sexta-feira, 21 de junho de 2019

Como nascem as palavras


Poucas vezes se tem a oportunidade de assistir ao nascimento de uma palavra.

Elas principiam nas mentes dos escritores, que criam neologismos quando sentem que o vocabulário à disposição não é suficiente para manifestar nos textos as ideias que os inquietam – fenómeno que, esclareça-se, é cada vez mais incomum por culpa da higienização da língua em curso, que ignora o carácter simbólico dos nomes ao propô-los antes como meras descrições (é neste sentido que se vão arrancando do léxico palavras que não se comportam como descrições, digamos, “gerais” – existe uma guerra surda contra o particular e o singular), e pelo pavor presentista à adjectivação, entendida como uma obstrução à transmissão de mensagens mundificadas, racionais e equitativas.

Como escrevi, poucas vezes se tem a oportunidade de assistir ao nascimento de uma palavra, desde o conceito à forma, mas o meu exemplo favorito dessa ocorrência foi plasmado pelo erudito autor inglês seiscentista Thomas Browne num opúsculo que nem sequer tencionou tornar público (inicialmente, no mínimo).

Em Religio Medici, de 1643, um ensaio confessional sobre a relação da crença religiosa (ou falta dela) e a profissão de físico, Browne reflecte varias vezes sobre a morte; assim, a dada altura, no entrecho de uma observação sobre o martírio, pode ler-se o seguinte:

«The leaven therefore and ferment of all, not onely Civill, but Religious actions, is wisedome; without which to commit our selves to the flames is Homicide, and (I feare) but to passe through one fire into another.» [Este sublinhado e os seguintes são meus.]

Nestas linhas, a voluntária entrega do indivíduo à morte é descrita como sendo «homicídio», mas, mais à frente, quando se comenta o desfecho da vida do tribuno romano Catão, o Novo, encontramos o seguinte:

«There be many excellent straines in that Poet [Lucano], wherewith his Stoicall Genius hath liberally supplyed him; and truely there are singular pieces in the Philosophy of Zeno, and doctrine of the Stoickes, which I perceive, delivered in a Pulpit, passe for currant Divinity: yet herein are they in extreames, that can allow a man to be his owne Assassine, and so highly extoll the end and suicide of Cato; this is indeed not to feare death, but yet to bee afraid of life. It is a brave act of valour to contemne death, but where life is more terrible than death, it is then the truest valour to dare to live (…)»

Considero este exemplo emocionante: com poucas páginas de entremeio, a ideia de dar o ser a uma nova palavra, que coalesce na designação «suicídio», porque «homicídio» é considerada exígua para albergar a inteireza do sentido que o autor ambiciona expressar. E, no entanto, foi preciso esperar por 1643 para que Browne, letrado obcecado com a criação de neologismos, o fizesse (foi, também, o criador de centenas de palavras, como exaustão, computador, literário, alucinação, precoce, invigorar).

Cito sempre um exemplo português que reforça esta novidade: no capítulo VIII da quatrocentista Crónica da Guiné, o cronista Gomes Eanes da Zurara narra desta forma o receio que os navegantes exprimem ao Infante D. Henrique quando este lhes pede para irem para além do Cabo Bojador:

«– Como passaremos – deziam eles – os termos que poseram nossos padres, ou que proveito pode trazer ao Infante a perdição de nossas almas juntamente com os corpos, que conhecidamente seremos homicidas de nós mesmos

O sentido e a aplicação de «homicidas de nós mesmos» são idênticos aos que se lêem na primeira transcrição de Browne – «to commit our selves to the flames is Homicide» –, mas a criação da palavra oportuna só viria pouco mais de dois séculos depois.