A
máquina humana é um eternigrama, cujo fulcro é o coração: em forma de
cone, ele é a jóia orgânica que mais se assemelha à representação cónica
do tempo conceptualizada pelos físicos, segundo a qual cada indivíduo é
o orifício de uma pessoalíssima âmbula por onde passa como areia em
vidro o fluido espácio-temporal — atrás, uma história vasta de
ocorrências e possibilidades contra-factuais; em diante,
todas as conjecturas. Somente o presente é pequenino,
quasi-unidimensional. Em momentos de morbidez ou melancolia, essas
imensidões atemorizam, uma por arrependimentos, outra pelo desconhecido —
e em ambas o coração pronuncia-se aflito como pássaro em gaiola;
infinitesimal ponto de fuga de todos os universos pessoais, uma
topografia traçada em quadrícula por sismografias originadas nesse
Cocito que é o occipício.
Porém, de que tempo estamos a falar? Mutante que se transfere por inteiro de uns anos para outros, objecto que oxida verdadeiramente e do qual a velhice é a ferrugem, o homem só se torna compreensível se for pensado como criatura híbrida de matéria e de espírito — de tempo —, tal como a marinha lesma verde e os vulgares cogumelos das nossas matas são seres híbridos entre o animal e o vegetal. O ser humano é um pólipo entre o carnal e o temporal, carneiro da Tartária entre animal e transcendente, na sua hipociclóide trajectória de vida não vive, verdadeiramente, nem no mundo, nem no tempo: erosivo, aquele esboroa-lhe o corpo com impiedosos rasgos de senectude; o outro fá-lo estrangeiro da sua própria identidade, ruína entre ruínas. Só no fluxo eterno está em casa o ser humano — só na coruscante sefira dos sonhos e dos deuses ele se encontra entre iguais, orbivagante e pluridimensional. Só aí nasce idoso e morre jovem; só aí acena uma despedida quando se aproxima; só aí, entre protaicos da mesma ordem, ele comunica com um sargaciante oceano de memórias em que coexistem todos os períodos.
A vida é, pois, como o coração, ponto de fuga entre dois estádios de não-existência. Nodular tirocínio que todos os seres precisam de atravessar.