I.
Finalmente tive tempo para ver a gravação que fiz da recente palestra
que Steven Pinker deu em Lisboa e constatei com desânimo os erros
históricos e as espantosas simplificações com que este autor — que eu
muito gostava de ler e de recomendar com entusiasmo quando ele se
dedicava à teoria da linguagem e à psicologia cognitiva — defende a sua
teoria teleológica de um Milénio liberal, baseado nos "valores do
Iluminismo".
Uma das desmontagens mais lúcidas dessa teoria foi publicada por Nicholas Nassim Taleb e Pasquale Cirillo sob a forma de um artigo académico intitulado The Decline of Violent Conflicts: What the Data Really Say? Convido os meus leitores a prestarem-lhe atenção e, também, a lerem o paper On the Statistical Properties and Tail Risk of Violent Conflicts — este apesar de estar voltado para leitores mais especializados em matemática é, ainda assim, compreensível. Deste, aliás, transcrevo esta passagem do seu intróito, que encapsula na perfeição toda a falibilidade das premissas pinkerianas:
«Similar mistakes have been made in the past. In 1860, one H.T. Buckle used the same unstatistical reasoning as Pinker and Spagat."That this barbarous pursuit is, in the progress of society, steadily declining, must be evident, even to the most hasty reader of European history. If we compare one country with another, we shall find that for a very long period wars have been becoming less frequent; and now so clearly is the movement marked, that, until the late commencement of hostilities, we had remained at peace for nearly forty years: a circumstance unparalleled (...) The question arises, as to what share our moral feelings have had in bringing about this great improvement."Moral feelings or not, the century following Mr. Buckle’s prose turned out to be the most murderous in human history.»
II.
Em relação a esta publicação anterior, um dos erros históricos de Steven
Pinker é a constante ilustração dos tempos antigos como particularmente
obcecados com a tortura e métodos perversos de execução — nisso é
coerente com a sua patente (mas à la carte) iluminismofilia e já
explicarei porquê.
Este autor é sempre pródigo em apresentar
slides com exemplos de torturas medievais e modernas para contrapor
essas imagens com a candura iluminista que ele tanto gosta, de molde a
dizer "vejam como já deixámos a barbárie
para trás". O que ele não sabe — ou se sabe, não revela — é que a
maioria dessas imagens, pelo menos as mais exóticas e violentas,
retratam cenas que nunca existiram: são ilustrações decalcadas
directamente de narrativas hagiológicas ou episódios mitológicos. A
sempre conspícua imagem de um homem dependurado pelos pés a ser serrado
ao meio, por exemplo, tem origem no lendário martírio do profeta Isaías
que, segundo o hagiológio, assim foi executado — nesta ilustração que
aqui apresento, da chamada Biblia de Roda (c. XI-XII), ainda pode
observar-se Isaías coroado por um nimbo de santidade, atributo que, ao
longo dos séculos, perdeu visibilidade em posteriores representações
inspiradas neste episódio e que já mostram cenários seculares.
Foi, precisamente, no século XVIII, o vulgarmente chamado das Luzes (do
ponto de vista histórico é mais correcto designá-lo desta forma que
pelo adjectivo Iluminista), que se construiu uma ideia grotesca da
medievalidade e da modernidade, com a profusão de falsos instrumentos de
tortura inventados por antiquários. Nesta ligação podem ler um artigo que escrevi sobre isso há uns tempos.
Nesse sentido, não há duvida nenhuma que Pinker perdura a tradição iluminista de pintar o passado mais negro que o presente.
Nesse sentido, não há duvida nenhuma que Pinker perdura a tradição iluminista de pintar o passado mais negro que o presente.