Desde a publicação de The Sense of Style: The Thinking Person's Guide
to Writing in the 21st Century (2014) que o psicólogo cognitivo Steven
Pinker se tornou um dos mais exasperantes gurus contemporâneos do
cientismo, propondo nesse prospecto uma abordagem positivista à escrita
daquilo que ele considera “o bom texto”. O título do trabalho é,
especialmente, programático: o guia de escrita para o pensador do século
XXI – escrita, sublinha-se, com estilo. Mas qual estilo? Em inglês, sense, denota sentido, evidentemente, mas no enquadramento
positivista pinkeriano a acepção é aquela que no século XVIII se
baptizava de “a boa razão”: a razão ortogonal, ortodoxa, pragmática e
extirpada de metafisicismos.
Os tiques positivistas,
esclareça-se, transmeiam toda a obra de Pinker, mas mesmo os leitores
mais atentos (como eu, que a li quase toda) não poderiam ter adivinhado
que este autor publicaria em 2011 um volume bizarro, intitulado The
Better Angels of Our Nature: The Decline of Violence in History and its
Causes (Os Anjos Bons da Nossa Natureza: Porque tem Declinado a
Violência). Este extravagante livro, cujo corpo mastodôntico
singulariza em demasia a debilidade da sua tese – a de que a humanidade
caminha, teleologicamente, para um devir não-violento; romagem
neo-milenarista que o autor tenta provar com uma profusão estonteante de
estatísticas, gráficos e tabelas –, além de estar polvilhado de sérios
erros históricos, consistiu no casulo em que Pinker se metamorfoseou em
definitivo de psicólogo cognitivo em guru cientificista; ersatz de
Rousseau para o século XXI, coligando a inquebrantável fé smithiana no
mercado livre com os pergaminhos racionais dos filósofos das Luzes.
O conceito em que assenta The Better Angels […] não é inédito: já em
2005 o escritor americano Harold Schechter publicara Savage Pastimes: a
Cultural History of Violent Entertainment (Passatempos Selvagens: uma
História Cultural do Entretenimento Violento), opúsculo interessante
(escrevi «interessante», porque li quando foi editado e gostei) que
Pinker aplaude e reiteradamente referencia no seu cartapácio quatro vezes
maior. O ponderado Schechter pressiona suavemente o botão hegeliano que
Pinker carrega com toda a força do seu braço, credibilizando com esse
volume e com o perfeitamente panfletário Enlightenment Now: The Case
for Reason, Science, Humanism, and Progress (O Iluminismo Agora: Em
Defesa da Razão, Ciência, Humanismo e Progresso, 2018) uma
fantasmagoria da história, na qual a filosofia da “boa razão” das Luzes
(o titular Iluminismo, Agora) é servida à guisa de receita para todos os
erros hodiernos. Pinker quer ser o Rousseau de um novo Contrato Social
para o século XXI: na sua visão utopista, a história caminha a passos
rápidos para uma parúsia pacifista e as mortandades em massa que,
entretanto, vão ocorrendo (uma chatice) são unicamente resquícios de
barbarismo ou acidentes de inferior manifestação na voraz linha
ascendente de paz patenteada pelo gráfico.
O seu perfil de
académico e, sobretudo, a persona de opinion maker predilecto de
luminárias tecnogeek e de vacuidades do mundo da política e do
entretenimento oferece um radiante efeito de auréola ao seu discurso,
legitimando uma sucessão de disparates. Com efeito, ao propor a
filosofia das Luzes como panaceia, Pinker ignora (se de propósito ou
não, não interessa, porque o resultado é idêntico) o lado negro e
extremista de diversos filósofos seiscentistas e setecentistas: na
generalização partilhada entre eles de que o ser humano seria capaz de
construir sociedades inéditas com base em leis universais de “boa
razão”, científicas, práticas (estava-se no tempo em que se descobria
nos laboratórios e nos cafés leis universais para tudo e mais alguma
coisa), o espírito das Luzes nunca ocultou uma incómoda propensão para o
utopismo autoritário; já presente precisamente em Rousseau, que, entre
outras coisas, como a criação de uma religião civil, defendia ser
necessário usar a força bruta para obrigar as massas a reconhecer aquilo
a que ele chamava de “vontade universal” – tropo que fez escola nos
movimentos revolucionários de Direita e de Esquerda coalescidos no
século XX, não sendo extraordinário que tanto Giovanni Gentile como
Lenine, entre tantos outros, se arrogassem de seus fidedignos exegetas.
Por trás das lentes cor-de-rosa dos seus óculos, Pinker também parece
ignorar toda a prosa anti-semita e racista publicada por alguns dos mais
célebres e representativos filósofos das Luzes, como Voltaire, Hume e
Kant, que escreveram linhas bem desagradáveis sobre judeus e negros. É à
sombra desse tipo desultório de ignorância (os ingleses chamam-lhe,
expressivamente, cherry picking) dos escritos mais polémicos dos
filósofos das Luzes e do delineamento setecentista do que viria a ser o
novíssimo racismo científico de Oitocentos – com o seu positivista
pendor eugénico –, que Pinker constrói uma iteração do Iluminismo que se
assemelha mais à democrática ideologia liberal explanada por Fukuyama
no clássico da futurologia falhada The End of History and the Last Man
(O Fim da História e o Último Homem, 1992) do que ao Iluminismo
histórico.
Em 1750, Voltaire escreveu em Essai sur les moeurs et
l’esprit des nations (Ensaio sobre os costumes e o espírito das
nações): «Eles [os judeus] mantém intactos todos os seus costumes, que
são o contrário daquilo que devem ser os correctos costumes sociais;
assim, foram justamente tratados como um povo adverso a todos os outros,
que eles apenas servem por ganância e ódio nascidos do seu fanatismo;
transformaram a usura num dever sagrado.» E ainda: «Aquilo que mais a
chocou [Émilie du Châtelet] foi ver que essas três ou quatro nações
poderosas [Egipto, Grécia, Roma] eram sacrificadas nesse livro
[Discours sur l'histoire universelle, de Bossuet] em benefício do
pequeno povo judeu, que ocupa três quartos da obra. À margem, no final
do discurso sobre os judeus, vemos esta nota escrita pelo seu próprio
punho: pode-se falar muito sobre esse povo em teologia, mas ele quase
nem merece lugar na história» [traduções minhas, itálico original]. A
polímate Émilie du Châtelet, amante de Voltaire, foi uma das figuras
femininas mais brilhantes do século das Luzes, mas, tal como o seu
amado, achava que os judeus não mereciam um lugar na história. Hume, por
exemplo, no ensaio XXIV do póstumo primeiro volume de Essays and
Treatises on Several Subjects (Ensaios e Tratados sobre Vários
Assuntos), publicado em 1758, escreveu o seguinte na quinta nota de
rodapé: «Sou levado a suspeitar que os negros e, no geral, todas as
outras espécies [sic] humanas (pois existem quatro ou cinco tipos
diferentes) são naturalmente inferiores aos brancos. (…) Na Jamaica, é
verdade, dizem que há um negro que é um homem versado e de saber, mas o
mais provável é que ele seja afamado por aptidões muito inferiores, que
nem um papagaio que é capaz de dizer com clareza algumas palavras»
[tradução minha]. Seguindo directamente na esteira de Hume, Kant anotou
em 1764 no seu Beobachtungen über das Gefühl des Schönen und Erhabenen
(Observações sobre o Belo e o Sublime): «Fundamentais são as
diferenças entre estas duas raças humanas [negros e brancos] e parece
que são tão grandes no que diz respeito à capacidade mental, quanto no
que concerne à cor» [tradução minha].
Transcrevo estes exemplos
para mostrar que a “república das letras”, fervente cadinho de ideias
inovadoras sobre os papéis dos homens e dos estados, foi, em suma,
composta por homens e mulheres reais, de carne e osso, com as suas
preferências, com os seus preconceitos e, em muitos casos, com crenças
que hoje consideramos inadmissíveis, mas que à época eram aceites como
científicas - eram consensuais. Na verdade, podemos trajectoriar o
sentimento milenarista positivista que se decalca dos mais recentes
livros de Pinker retrocedendo às crenças positivistas do período da
Revolução Francesa e dos anos imediatos que se lhe seguiram, marcados
por profunda hostilidade entre os pugnadores da positivista “vontade
universal” e aqueles que por estes eram qualificados de “inimigos da
raça humana”, ambígua classificação de época que não só categorizava
padres refractários e monarquistas, como também camponeses (como os da
Vendeia) e intelectuais discordantes. Da leitura do primeiro volume das Mémoires d’Outre-Tombe. 1768-1800 (Memórias de Além-Túmulo.
1768-1800) de Chateaubriand compreende-se pelo seu testemunho directo
como a primeira fase da Revolução Francesa já estava animada pelo ferino
espírito autoritário que caracterizou a fase assassina do Terror. Novas
religiões civis criadas de raiz nessa altura, como o famoso Culto do
Ser Supremo e, um pouco mais tarde, a comteana Religião da Humanidade,
tinham como predicado a transformação da sociedade através do cientismo:
a crença que a “boa razão”, materialista, lógica, científica,
inauguraria no planeta uma nova era de paz e prosperidade. O nome de
Auguste Comte é, neste âmbito, paradigmático: inventor da sociologia
(palavra que o próprio inventou) e da positivista Religião da
Humanidade, envisionou um mundo utópico em que o governo global seria
científico e o conhecimento científico o padrão universal de todas as
leis. Nos seus livros, inclusive naquele que ensina a escrever
“cientificamente”, Pinker não propõe coisa diferente.
Aliás, em The Better Angels […] pode ler-se: «Parece que a [boa] Razão caiu em
tempos difíceis. A cultura popular desabou para novos abismos de
estupidez e o discurso político americano tornou-se uma corrida para o
fundo do poço. Vivemos numa era de criacionismo científico, disparate
New Age, conspirações sobre o 11 de Setembro, leituras psíquicas por
telefone e ressurgente fundamentalismo religioso. (…) Apesar de toda a
estupidez, as sociedades contemporâneas têm vindo a ficar mais espertas
e, tudo somado, um mundo mais esperto é um mundo menos violento.» Este
pequeno excerto revela o paradoxo de Pinker: por um lado, avança com a
ideia que «a Razão caiu em tempos difíceis», para, em seguida, tirar da
cartola o argumento que «um mundo mais esperto é um mundo menos
violento», equacionando, à boa tradição positivista, o conhecimento
científico à paz milenarista, como se conhecimento e aversão à violência
fossem cognatos. As mudanças e os avanços tecnológicos sempre foram
observados pelos utopistas como ferramentas salvíficas de uma humanidade
na puerícia – desde os caminhos-de-ferro ao foguetão e até à Internet
–, mas o advento da parúsia pacifista permanece ainda para além do
horizonte.
O profeta Pinker bem pode pregar em milhares de
páginas que aquilo que precisamos para corrigir os nossos erros é
“Iluminismo, agora!”, mas, como vimos, as filosofias das Luzes não foram
mais esclarecidas que as nossas próprias razões actuais, maculadas
pelas nossas reprovações e exclusão daquilo que vai sendo considerado
desviante da contemporânea ortodoxia científica – desviante do consenso.
Somos igualzinhos aos nossos antepassados setecentistas: é que um
Milénio, seja qual for a sua cartilha, não tolera a presença de
discordantes.
(Imagem: algumas das obras de Pinker e uma tabela
de The Better Angels [...] em que esse autor reordena relativamente
catásftrofes globais por mortandade para defender a sua tese que a
história está a ficar mais pacífica.)