Na passada sexta-feira, no decurso da mesa redonda promovida pela Bedeteca de Lisboa, falei sobre a minha experiência enquanto autor de banda desenhada e da forma como me relaciono com a crítica especializada que observa os meus trabalhos. Como expus à assistência, a minha carreira de autor possui duas faces: a de autor de BD e a de escritor; e foi nesse contexto que esclareci que entendo a crítica como uma espécie de meta-leitura da obra. Diante da impossibilidade de conhecer a opinião individual de cada leitor, a análise crítica pode oferecer pistas para se perceber como o trabalho é recebido. Ou seja, o agente crítico acaba por representar, nesse instante reflexivo, o pensamento da massa anónima que se compõe pelo conjunto de potenciais leitores.
Em seguida, e para responder a uma pergunta sobre o problema da falta de hábitos de leitura de banda desenhada manifestada pelas novíssimas gerações, descrevi uma ideia com a qual já andava a brincar há algum tempo: ela correlaciona-se com a questão da iliteracia (aparentemente, lê-se cada vez menos, apesar de se venderem mais livros), mas apenas à superfície, porque acredito que o livro e o álbum de BD acabam, na verdade, por ser objectos estranhos e pouco apelativos para as crianças, sobretudo se não forem habituadas a contactar com eles desde a infância. Adicionando isso a um naturalíssimo
bias pelo estímulo visual, pela imagem, é também natural que a leitura de banda desenhada pelos jovens tenha sido regular durante a década de oitenta do século passado, mas que se tenha deteriorado nos períodos seguintes. Dá-me a impressão que a BD se vendia mais nessa altura porque, com efeito, consistia no único produto de
merchandising disponível para comércio que possibilitava aos miúdos o contacto com as personagens que viam nos desenhos animados.
A influência que a televisão opera sobre o espectador é muito grande e tudo aquilo que é anunciado por esse meio de comunicação adquire uma auréola de importância enorme; um único anúncio televisivo é muitíssimo mais eficaz que um
spot de rádio repetido a cada hora ou uma publicidade de meia-página publicada num jornal durante um mês. Prosseguindo por este caminho, basta um breve exercício de memória para perceber que todas as séries de animação transmitidas na televisão durante essa década, desde aquelas que apresentavam as personagens de Walt Disney às criadas pelos estúdios Warner Bros e Hanna-Barbera, passando por adaptações de histórias franco-belgas do Tintin e dos Estrumpfes até aos heróis da Marvel, possuíam um reflexo impresso em papel sob a forma de revistas e álbuns de banda desenhada. Em suma: num esforço para prolongar a vida útil da personagem televisionada, a compra dos álbuns e revistas era, em última analise, o único desfecho possível; uma procura esporeada pelo televisionamento. É claro que o hábito da leitura, mesmo que a leitura
per se, não seja o móbil (o objectivo pode ser, somente, prolongar a vida útil da personagem televisionada), acaba por criar efeitos secundários: o gosto pelos livros, a valorização do conhecimento e o alcance que a cultura é útil na vida diária. Mesmo assim, todas essas qualidades, por mais nobres que sejam, são, de igual modo, colaterais a uma actuação que não as ambicionou.
Mais ou menos no início da década de noventa, quando o
merchandising em órbita das personagens animadas começou a ser feito com
action-figures, perfeitamente miméticas, e com jogos virtuais, que reproduzem com grande verosimilhança a aparência da animação televisiva, o livro perdeu peso porque se trata de um objecto informe, no que diz respeito à aproximação que faz às personagens animadas: é fraco enquanto simulacro da personagem preferida e perde para com a
action-figure e o jogo enquanto objecto de afecto, simplesmente porque estes são mais rápidos a criar emoções fortes. Perde, até injustamente, por culpa da biologia: jogar computador com regularidade liberta uma quantidade excessiva do neurotransmissor dopamina no
nucleus accumbens do cérebro; a hiper-estimulação do córtex pré-frontal que ocorre em consequência disso irá traduzir-se, a médio prazo, em efeitos análogos aos manifestados por indivíduos viciados em heroína. A tolerância anormal à dopamina, e a necessidade de doses cada vez mais elevadas para que o córtex pré-frontal seja excitado, cria sintomas como a desatenção, a perda de memória e, mais importante, a incapacidade de relacionar um item com outro – ou seja, perde-se a capacidade de viver no tempo inteiro (planear o futuro) para se viver somente no presente. Todas as actividades que não se cifrem num estímulo imediato (algo que ofereça uma recompensa rápida) são, liminarmente, rejeitadas. Actividades como a leitura, portanto.
No seguimento deste raciocínio, concluí a minha participação na mesa redonda com o argumento que a banda desenhada é, provavelmente, uma arte em vias de extinção: pois se os jovens não a lêem (não lêem BD nem coisa nenhuma, na pior das hipóteses) como é que podemos estar à espera que alguns deles venham a querer ser autores de BD? Ou até a possuir a habilidade necessária para o efeito, já que a leitura é fundamental à cristalização de uma voz autoral forte? Acredito que a ilustração e o cartoon, tantas vezes confundidos com a banda desenhada, irão estar connosco por mais tempo: em primeiro lugar, têm a vantagem de ser artes visuais, e as novas gerações são as da imagem (a BD é, sobretudo, uma linguagem narrativa); em segundo lugar, são áreas que absorvem de modo célere e hábil as aplicações técnicas que as ferramentas digitais possibilitam, e este fascínio tecnófilo é bastante importante porque a tecnologia irá transformar os mundos da arte, do entretenimento e do trabalho. A fronteira entre aquilo que é trabalho e aquilo que é lazer encontra-se cada vez mais diluída e as noções de sacrifício e de dever são alienígenas para quem, hoje, tem menos de vinte anos. Nessa óptica não é falacioso projectar que a escola irá mudar bastante, porque se trata uma instituição que acompanhou sempre as sismografias da esfera laboral.
É (muito) fácil olhar para a escola com alguma poesia, mas convém lembrar que a sua função de origem é, apenas, formar peças para a engrenagem social: sejam elas médicos, advogados, técnicos de contabilidade ou, simplesmente, outros professores. A escola não tem,
à priori, o intuito de transmitir conhecimento de um modo desinteressado ou até altruístico: a escola modela trabalhadores para o futuro – ou assim esperamos. O facto de um aluno poder desenvolver uma carreira intelectual, individual, e, graças a essa valorização, tornar-se alguém que se destaque da média é uma contingência da escola lhe ter oferecido um meio conveniente ao estudo, à experiência e ao refinamento do conhecimento; contudo, isso não deixa de ser transversal. O objectivo principal da escola, desde que esse conceito foi criado, é formar os acessórios que a sociedade precisa para se sustentar. Lembrem-se que as massas só começaram a aprender a ler quando se tornou necessário decifrar as instruções das máquinas inventadas após a Revolução Industrial.
"Quem é que sabe dizer de cor quais são todos os rios de Moçambique?"
"Eu, eu, Senhor Professor! São o Búzi, o Pungué, o Limpopo, o..."
Na escola do Estado Novo, por exemplo, a transmissão de conhecimento estava subordinada à agenda política do regime.
Se o mercado de trabalho se tornar, definitivamente, diferente daquilo que é hoje (o que irá acontecer, de certeza absoluta), o modelo de escola plasmado pelo cânone do século XX vai desaparecer. De facto, manter uma escola física exige um orçamento anual tão elevado que várias instituições encontram-se já a desenvolver feições de implementar, de uma maneira perdurável, a escola virtual (o
b-learning e o
e-learning) na qual cada aluno estudará em casa, através do computador, as disciplinas que irão ao encontro dos seus interesses; ou,
in the long run, às exigências de um mercado de trabalho virtual. O trabalho do futuro será virtual, especializado e suportado pela prática de
outsourcing: será um sistema feito de pequenos pólos complementares, altamente especializados, invés de grandes complexos empresariais, como os que ainda hoje subsistem. Não é fácil pensar sobre qual será o futuro do livro num ambiente dessa natureza, mas tenho uma ideia.
Assumindo que continuará a ser possível fabricar papel (ou uma imitação eficaz), acho que o livro poderá sobreviver enquanto veículo de contra-cultura, impresso de modo artesanal em pequenas e anacrónicas tipografias, mas nunca como produto de entretenimento e de transmissão de conhecimento porque esses, e o modo como os entendemos agora, não serão os mesmos. Nada disto é novo: pensem na quantidade de ofícios, artes e métodos de transmitir conhecimento que se perderam ao longo da história; de certeza que houve, durante anos a fio, incas saudosistas da linguagem quipu que foi descartada em favor da introdução da escrita na região andina pelos conquistadores espanhóis. É uma pena que os hábitos de leitura venham a desaparecer, mas isso é, até ao momento, um caminho inevitável.
Um futuro sem leitores, mas, também, sem livros para ler poderá ser, em verdade, um futuro equilibrado.