domingo, 15 de maio de 2016

Incineramento de igrejas em Espanha

Porque hoje estive a desenvolver em conversa o intrigante tema dos incineramentos espanhóis de igrejas na transição do século XIX para o XX - muito antes sequer do período da primeira república espanhola -, recupero um texto em que escrevi sobre o assunto. (A imagem em anexo é de uma cronologia posterior, precisamente o da primeira república espanhola, mas transmite eficazmente o sentimento evocado no texto.) A ler:

«Para nós é útil conhecer bem a história de Espanha, porque grande parte dos movimentos da história de Portugal só fazem sentido se forem observados sob a lente do conflito entre a independência dos vários reinos peninsulares, face à hegemonia com que Castela sempre tentou pressioná-los para os dominar, mas também porque esta é, em mais do que meia-dúzia de aspectos, radicalmente diferente da portuguesa. Para o efeito desta crónica interessa pensar sobre a perda do império espanhol, cerca de 1898, após a guerra com os Estados Unidos, circunstância que serviu para voltar os militares espanhóis, postos ao lado da elite conservadora, composta pelo exército, coroa e clero, contra os populares. Situação que não foi, em si, novidade, porque a tropa ociosa mormente foi instrumento de desordem e tirania, mas, nessa altura, com um general por cada duzentos e cinquenta soldados, o exército espanhol era o mais miserável da Europa – e aquele que custava mais dinheiro a manter. Uma das prerrogativas especiais desse magote de mercenários foi a de condenar civis em corte marcial, regalia largamente utilizada para eliminar vozes críticas, ódios de estimação e quaisquer tipos de indesejados. Entre a massa de trabalhadores rurais e a menor mole de operários urbanos – uma tão provinciana quanto a outra – fermentou ainda mais a desconfiança pelo estado e seus agentes repressivos, que a plebe espanhola sempre cevou, sem pejo de verter sangue, como ainda hoje é possível testemunhar na comunicação social. Daí que, mais do que o apelo da revolução comunista, tenha sido o recurso às tácticas de guerrilha anarquista a medrar entre os rústicos e os assalariados cosmopolitas, ambos desincorporados de qualquer grande organização – na realidade, o anarquismo medrou com maior intensidade na Espanha do que na própria Rússia.

O baixo clero, recrutado entre o povo, continuava a ser tão pobre quanto os paroquianos, enquanto o alto clero, cúmplice de charneira dos grandes proprietários e da monarquia (dividida entre as facções isabelina e carlista, igualmente reaccionárias e sanguinárias), vicejava no luxo e no abuso sem limites de poder: bispos e arcebispos eram nomeados pela coroa e sustentados por volumosos subsídios, oficialmente contratualizados pela Concordata de 1851, assinada entre a lasciva Isabel II e o mariano Papa Pio IX (promulgador do dogma da Imaculada Conceição). Além disso, ilimitados membros do clero faziam parte dos governos e inspeccionavam a sociedade através de um aperto sufocante nos seios das famílias, controlando a vida de todos os dias. Talvez resida aqui a escolha dos revoltosos espanhóis de queimar igrejas, em vez de instituições de carácter estatal, como solares, câmaras municipais, quartéis, estações de comboios, postos de correios ou até prisões. Documentou-se, no mínimo, seis grandes ocorrências de fogos postos em igrejas em Espanha, entre 1808 e 1936, ateados tanto por resistências de esquerda como por forças de direita. A uni-las esteve a religião católica, o que é espantoso e, sem dúvida, um dos casos mais estranhos da história ocidental contemporânea.»

(Adaptação de uma crónica publicada originalmente na revista LOUD! de Abril de 2015.)