quarta-feira, 4 de maio de 2016

Ainda sobre a estátua destruída de D. Sebastião


O Jornal da Noite, da SIC (foi o telejornal que vi), não falou - nem sequer em rodapé - do crime de lesa-património em que consistiu a destruição da estátua de D. Sebastião (colocada na fachada da estação ferroviária do Rossio, em Lisboa) por um debilóide que a atirou ao chão ao guindar-se à consola que a sustentava para tirar uma selfie com a câmara fotográfica do telemóvel. Também já circulam pela Internet e sua nativas redes sociais diversas paródias feitas em Photoshop alusivas ao crime, nas quais se veiculam mensagens aviltantes à figura de D. Sebastião, transmitindo a ideia de que quebrar-se uma sua estátua é coisa engraçada ou sem importância; noção que se correlacionará, suspeita-se facilmente, com a noção errónea de que D. Sebastião foi um rei que submergiu o país nas trevas filipinas e que é, de alguma forma atávica, o culpado pela(s) subsequente(s) crise(s) portuguesa(s).

O problema português não reside na figura de D. Sebastião - da qual, aliás, devíamos ter comiseração, porque teve uma vida miserável -, mas na incapacidade dos portugueses aprenderem a história do seu país, o que os leva, demasiadas vezes, a trocarem o factual pelo anedótico e o racional pelo emocional. D. Sebastião não foi um rei perfeito (até fisicamente seria muito desproporcionado - consequência de vários casamentos consanguíneos na família), mas a verdade é que não existiram reis portugueses perfeitos, logo eleger D. Sebastião como arquétipo do Mau Rei Português é precipitado e até errado, porque houve soberanos piores que, hoje, passam no exame dos portugueses com notas mais elevadas (basta falar em D. Afonso VI, para citar um caso extremo de incapacidade). De facto, o desastre de Alcácer-Quibir, em 1578, teve como principal motor ideológico o facto de a nobreza da altura nunca ter sido capaz de engolir o sapo das praças portuguesas baldadas no Norte de África por D. João III - praças que não eram precisas para nada. Ansiosa por glórias anacrónicas e saques imaginários, essa nobreza de câmara fez constantemente em água a cabeça de D. Sebastião até que, enfim, lá apareceu uma oportunidade para se ir em grande número até Marrocos para a desforra. Em seguimento, o advento filipino poderia ter sido evitado por quem de direito, se tivesse existido espírito para tal (mas isso são outros quinhentos); de qualquer forma, D. Filipe II de Espanha e I de Portugal, que era tio de D. Sebastião - logo, candidato legítimo à sucessão - não só não foi nenhum usurpador espanhol, como nem sequer era espanhol, de todo: era meio-alemão e português. De espanhol não tinha nada. É fácil de ver que a maior ameaça à soberania portuguesa teria sido D. FIlipe V de Anjou: para este, que era francês (o nome dá a entender, caso não se tenha percebido), todos os peninsulares eram espanhóis (inclusive os portugueses, presume-se), daí que quando se sentou no trono em Castela principiou logo em tratar da saúde à brincadeira de existirem diversos reinos peninsulares, que isto de haver um só reino era bem mais simples. É a partir daqui (século XVIII) que começa a despontar a ideia de uma Espanha verdadeiramente una: a Espanha só é Espanha, propriamente dita, desde 1856, porque somente em Junho desse ano é que o país se passou a chamar oficialmente «España». Até aí era o "Reino das Espanhas", que é a designação que surge nas constituições espanholas de 1812, 1814, 1834, 1837 e 1845: só na de 1856, como disse, é que aparece a designação «dominios de España» em vez da tradicional «las Españas».

Ou seja: até ao século XIX nunca existiu Espanha nenhuma - existiram, sim, vários reinos peninsulares que foram sendo anexados por Castela que, para efeito de centralização e ilusão de homogeneidade territorial, foi buscar a designação de Hispânia - o antigo nome que os romanos deram à península - para se auto-denominar. Desde o século XVI que existe documentação portuguesa (e não só) em que se levantam vozes contra esta suasória estratégia de 'marketing' político.

Felizmente, quando D. FIlipe V ascendeu ao trono castelhano nós já tínhamos feito a Restauração, defenestrando no Terreiro do Paço o castelhanófilo Miguel de Vasconcelos (em 1640), e vencido a Batalha dos Montes Claros, perto de Borba (em 1665), que solidificou em definitivo - até quando, logo se verá - a independência portuguesa. Por isso é precipitado e até errado dizer que D. Sebastião nos introduziu nas trevas espanholas.

Usar essa incorrecção para desculpabilizar - ou justificar - a destruição da sua estátua por um paspalho é apanágio de atraso mental misturado com má-fé. Na verdade, nem que fosse uma estátua de Miguel de Vasconcelos: a história faz-se com aqueles que a constroem, não com aqueles que a destroem.