O Jornal da Noite, da SIC (foi o telejornal que vi), não falou - nem
sequer em rodapé - do crime de lesa-património em que consistiu a
destruição da estátua de D. Sebastião (colocada na fachada da estação
ferroviária do Rossio, em Lisboa) por um debilóide que a atirou ao chão
ao guindar-se à consola que a sustentava para tirar uma selfie com a
câmara fotográfica do telemóvel. Também já circulam pela Internet e sua
nativas redes sociais diversas paródias feitas em Photoshop alusivas ao
crime, nas quais se veiculam mensagens aviltantes à figura de D.
Sebastião, transmitindo a ideia de que quebrar-se uma sua estátua é
coisa engraçada ou sem importância; noção que se correlacionará,
suspeita-se facilmente, com a noção errónea de que D. Sebastião foi um
rei que submergiu o país nas trevas filipinas e que é, de alguma forma
atávica, o culpado pela(s) subsequente(s) crise(s) portuguesa(s).
O problema português não reside na figura de D. Sebastião - da qual,
aliás, devíamos ter comiseração, porque teve uma vida miserável -, mas
na incapacidade dos portugueses aprenderem a história do seu país, o que
os leva, demasiadas vezes, a trocarem o factual pelo anedótico e o
racional pelo emocional. D. Sebastião não foi um rei perfeito (até
fisicamente seria muito desproporcionado - consequência de vários
casamentos consanguíneos na família), mas a verdade é que não existiram
reis portugueses perfeitos, logo eleger D. Sebastião como arquétipo do
Mau Rei Português é precipitado e até errado, porque houve soberanos
piores que, hoje, passam no exame dos portugueses com notas mais
elevadas (basta falar em D. Afonso VI, para citar um caso extremo de
incapacidade). De facto, o desastre de Alcácer-Quibir, em 1578, teve
como principal motor ideológico o facto de a nobreza da altura nunca ter
sido capaz de engolir o sapo das praças portuguesas baldadas no Norte
de África por D. João III - praças que não eram precisas para nada.
Ansiosa por glórias anacrónicas e saques imaginários, essa nobreza de
câmara fez constantemente em água a cabeça de D. Sebastião até que,
enfim, lá apareceu uma oportunidade para se ir em grande número até
Marrocos para a desforra. Em seguimento, o advento filipino poderia ter
sido evitado por quem de direito, se tivesse existido espírito para tal
(mas isso são outros quinhentos); de qualquer forma, D. Filipe II de
Espanha e I de Portugal, que era tio de D. Sebastião - logo, candidato
legítimo à sucessão - não só não foi nenhum usurpador espanhol, como nem
sequer era espanhol, de todo: era meio-alemão e português. De espanhol
não tinha nada. É fácil de ver que a maior ameaça à soberania portuguesa
teria sido D. FIlipe V de Anjou: para este, que era francês (o nome dá a
entender, caso não se tenha percebido), todos os peninsulares eram
espanhóis (inclusive os portugueses, presume-se), daí que quando se
sentou no trono em Castela principiou logo em tratar da saúde à
brincadeira de existirem diversos reinos peninsulares, que isto de haver
um só reino era bem mais simples. É a partir daqui (século XVIII) que
começa a despontar a ideia de uma Espanha verdadeiramente una: a Espanha
só é Espanha, propriamente dita, desde 1856, porque somente em Junho
desse ano é que o país se passou a chamar oficialmente «España». Até aí
era o "Reino das Espanhas", que é a designação que surge nas
constituições espanholas de 1812, 1814, 1834, 1837 e 1845: só na de
1856, como disse, é que aparece a designação «dominios de España» em vez
da tradicional «las Españas».
Ou seja: até ao século XIX nunca existiu Espanha nenhuma - existiram, sim, vários reinos peninsulares que foram sendo anexados por Castela que, para efeito de centralização e ilusão de homogeneidade territorial, foi buscar a designação de Hispânia - o antigo nome que os romanos deram à península - para se auto-denominar. Desde o século XVI que existe documentação portuguesa (e não só) em que se levantam vozes contra esta suasória estratégia de 'marketing' político.
Felizmente, quando D. FIlipe V ascendeu ao
trono castelhano nós já tínhamos feito a Restauração, defenestrando no
Terreiro do Paço o castelhanófilo Miguel de Vasconcelos (em 1640), e
vencido a Batalha dos Montes Claros, perto de Borba (em 1665), que
solidificou em definitivo - até quando, logo se verá - a independência
portuguesa. Por isso é precipitado e até errado dizer que D. Sebastião
nos introduziu nas trevas espanholas.
Usar essa incorrecção para desculpabilizar - ou justificar - a destruição da sua estátua por um paspalho é apanágio de atraso mental misturado com má-fé. Na verdade, nem que fosse uma estátua de Miguel de Vasconcelos: a história faz-se com aqueles que a constroem, não com aqueles que a destroem.