terça-feira, 30 de outubro de 2018

Veneza inundada - e congelada


 
Pelas imagens que a comunicação social nos vai mostrando pode constatar-se que a pulcritude de Veneza possui fulgurância suficiente para impedir que a água que a alcatifa neste instante não a repasse pelo sentimento trágico que, infelizmente, acompanha este género de infortúnios infligidos pelos elementos.

Há quatro anos, quando estive em Veneza, fotografei este precioso testemunho litografado numa hierática coluna disposta no Sotoportego del Traghetto, situado no distrito de Cannaregio: de contornos dilatados pela erosão, os petrícolas caracteres inscritos na superfície por um veneziano chamado Vincenzo Bianchi contam-nos sobre um extraordinário episódio, datado do Inverno de 1864, em que as águas venezianas congelaram.

O gelo era robusto e extenso o bastante para os venezianos irem a pé até à ilha de San Michele - na qual fica o cemitério de Veneza; onde está sepultado um dos meus heróis literários, o escritor inglês Frederick Rolfe, mais conhecido pelo seu pseudónimo Barão Corvo. A inscrição diz o seguinte [tradução minha]: «Eterna memória, do ano de 1864, do gelo visto em Veneza, que da Fondamenta Nove* a São Cristóvão** iam as pessoas em procissão, como numa avenida. Vincenzo Bianchi, em 1864.»


*Novo Paredão, uma reconstrução do século XVIII do antigo passeio marítimo quinhentista, destruído por uma tempestade.

**A ilha de San Michele consiste na junção artificial de duas ilhas: a antiga ilha de San Michele (onde foi construída no último quartel do século XV a primeira igreja veneziana de tipo renascentista) e a de San Cristoforo della Pace (na qual foi construído o cemitério, já no século XIX).


Sobre forças primordiais



O filósofo inglês John Gray escreve sobre a actualidade:

«Ours is an era in which political ideology, liberal as much as Marxist, has a rapidly dwindling leverage on events, and more ancient, more primordial forces, nationalist and religious, fundamentalist and soon, perhaps, Malthusian, are contesting with each other. In retrospect, it may well appear that it was the static, polarized period of ideology, the period between the end of the First World War and the present, that was the aberration. (...) that beneficent catastrophe will not inaugurate a new era of post-historical harmony, but instead a return to the classical terrain of history, a terrain of great-power rivalries, secret diplomacies and irredentist claims and wars. (...) At the worst, America faces a metamorphosis into a sort of proto-Brasil, with the status of an ineffectual regional power rather than a global superpower. (...) the days of liberalism are numbered. Especially as it governs policy in the United States, liberalism is ill-equipped to deal with the new dilemmas of a world in which ancient allegiances and enmities are reviving on a larger scale.»

Na verdade, estes trechos não pertencem a nenhuma reflexão sobre a actualidade, mas a uma especulação escrita em 1989 e dirigida ao artigo ensaístico intitulado The End of History? que o politólogo americano Francis Fukuyama deu à estampa nesse ano na revista The National Interest - e que serviu de base para a escrita do seu conhecido livro homónimo, publicado em 1992. Quase trinta anos depois, o retrato vertido por Gray em afilada e presciente lucidez é uma silhueta que cai de modo quase perfeito nos contornos da nossa actualidade. Nós somos este mundo descrito em 1989. Face a este retrato límpido e repungente como mercúrio, os imediatos discursos dos dias, sejam eles de que sinal forem, são apenas formas transitórias e insubstanciais que falham teimosamente - quiçá, ideologicamente - em fixar-se no essencial.

(Na imagem, de 1545, Herácles/Hércules assassina Caco, pela mão do artista bávaro Sebald Beham. Um episódio importante do repertório mitológico europeu que, se calhar, vale a pena resgatar para reflectir. Sobretudo, quando se pensa que no século XVI, quando esta imagem foi criada, Herácles/Hércules estava a ser reavaliado pelos humanistas num autêntico sentido greco-romano que havia ficado esquecido: não o de herói poderoso, mas o da personificação da ignóbil força bruta. Assim, a luta entre o patético Herácles/Hércules e o abjecto Caco parece simbolizar um qualquer enunciado difícil de decifrar.)

terça-feira, 23 de outubro de 2018

José Agostinho de Macedo: o inventor das 'Fake News'


Confiando no limite que a minha memória alcança, é seguro avançar com a hipótese que o inventor da insólita expressão Fake News (que tanto tem dado que falar) foi o nosso padre polemista José Agostinho de Macedo, um dos anti-heróis mais fascinantes da nossa história contemporânea e personagem paradoxal que tem merecido o meu estudo.

Se não me precipito, creio que a supramencionada expressão se estreia no verrinoso opúsculo Cordão da Peste; ou, Medidas Contra o Contágio Periodiqueiro, escrito em Fevereiro de 1821. Aí, sob o pseudónimo de Corcunda de Boa-Fé, Macedo escreveu o seguinte [actualizei a grafia]: "Como se pode combinar a estabilidade do governo, o sossego público, o amor da ordem, a observância das leis do novo regime, com a inquietação, que nos ânimos derramam tantas ideias destampadas, tantas NOTÍCIAS FALSAS, tantos projectos loucos, tanta flutuação de ideias, tanta contrariedade de doutrinas, e tão encontrados gritos dos incansáveis Periodiqueiros? Quem por eles saberá o que deve pensar, e o que deve fazer?"


quinta-feira, 11 de outubro de 2018

A Morte é sempre declarativa: uma meditação




A morte é um idioma universal.
Um desesperançado esperanto de pontos finais e verbos abreviados. Catacreses contidas em runas ocultas. Uma linguagem sequencial de presenças e ausências. Quadrículos sobre os quais são desenhados os destinos. A vida advém quando se pinta para fora das linhas.

A Prudência faz vista grossa.
Ébria no venéfico vinho da imaginação.

O sabor a sangue assombra sítios de sacrifício. Orlas onde, no vocabulário alquímico, se é devorado por dragões: o fogo dos seus ventres é uma coordenada que transcende o tempo.
Ainda morno, o xamanismo entalhado em algares cria ondas de calor. Saurópsides e artiodáctilos são tótemes frequentes em mitos fundacionais. Serpentes e cervídeos – cornos e cobras desbulham várias vezes a pele.
Nas oficinas dos alquimistas há sempre répteis pendurados nos tectos. Há répteis pendurados em igrejas. Crocodilos conspícuos: reptante fé que a repetência anediou e tornou invisível. Gnósticos ofitas acreditavam que Cristo e a Serpente eram o mesmo ser; e, com efeito, ecdise e crucificação são alegorias de ressurreição.

São sinais sabidos: escamíferas marcas de santidade – antídotos artesanais que são oferecidos.
Diz a esta pedra que se transforme em pão. Mas a qual pedra e que tipo de pão?...
O genoma da história é simétrico: ela rima e os mitos repetem-se. O profeta Daniel eliminou um dragão dando-lhe um bolo de breu, gordura e cabelos. Segundo Sérvio, as cobras habitam nas águas e as serpentes sobre a terra. Os dragões, todavia, vivem em templos. Num único templo nunca coexistirão dois dragões.
A pedra que o chamado Diabo e Satanás, o Grande Dragão, ofertou no deserto foi um bolo análogo ao de Daniel, feito para banir o dragão Cristo do templo de que o primeiro era príncipe: este mundo.


Porém, o templo de Cristo não era este mundo. A serpente desta terra equivocou-se: o reino não era daqui. O dragão de David obumbrava outro templo. Interrogações que, à laia de locais, ainda podem ser visitadas.   
Sai desse homem, espírito impuro. Qual é o teu nome?
Respostas estioladas como imagens expostas ao sol.
Derrubai este templo e em três dias o levantarei. O templo, afinal, era o corpo: antropomórfico ponto de fuga de um reino feito de verbo. Fármacos sacrificiais: carbunculoses no leito de um recendente rio de peçonha.
Em meu nome expulsarão demónios, apanharão serpentes com as mãos e se beberem veneno não morrerão.

Apanharão serpentes com as mãos. Ao toque, as serpentes são secas e duras; espécie de voltagem tornada carne, animais de vocação eléctrica, de visão termostática. Os seus silvos ardem como choques na pele. Há que confundi-las, descendo o catre do possesso por um único buraco que depois é tapado: Para demónios e espectros, a lei é esta: por onde entramos, somos extirpados. Livres de entrar e escravos para sair.
Será o homem como os demónios? Cativo da porta por onde entrou? Imobilizado no seu livre-arbítrio quanto um possuído decumbente num catre? A multidão é uma escultura viva, tão barroca no seu dinamismo quanto água ou estrelas em movimento.
Tornei-me um estranho para os meus irmãos.
Dois inequívocos sinais comprovam, a infecção de veneno espiritual que é a possessão demoníaca: glossolalia e a forense aptidão de revelar aquilo que está oculto.

Sangue que aliena o Diabo.
Mercúrio transudando da caldeira.
Vê o behemot que criei como a ti.
É a obra-prima de Deus.
Os animais do campo divertem-se à sua volta.
Acaso te dirigirá palavras ternas?
Algo orfeico e acre infiltra a quadricular moldura que nos cinge.
Quem lhe furaria as narinas para passar argolas?
Os seus ossos são como tubos de bronze, a sua estrutura como barras de ferro.
Põe-lhe a mão em cima.
Vais lembrar-te da luta e não repetirás.
Que luta é esta?
Que téssera se oculta nesta tapeçaria?
Que gramatical tenebrário?
Altivez argustica. Soberba algébrica - padrão opocéfalo que alucina e cheira a latim.
Este é, afinal de contas, o verdadeiro rosto. Caos. Um anti-jardim: prepóstero paraíso onde pastejam os porcos.
Reveste-te, pois, de glória e majestade.
E, então, também eu te louvarei, se triunfares pela força da tua mão.
Brincarás com ele como um pássaro?
Quando se atira uma pedra à agua, as ondas param longe nas margens. No horizonte.
O horizonte do peregrino está pejado de cruzes.
Sob o matiz submarino de lápis-lazúli, a coroa de espinhos parece feita de coral: argamassa aquática de agulhas e pólipos    
Pela força da tua mão.
Em cada mão um ponto final.
Dois pontos.
A morte é sempre declarativa.





(Imagens: detalhes de painéis de azulejos do Convento de São Paulo da Serra d'Ossa. Fotos do autor.)