A morte é um idioma universal.
Um desesperançado esperanto de pontos finais e verbos abreviados. Catacreses contidas em runas ocultas. Uma linguagem sequencial de presenças e ausências. Quadrículos sobre os quais são desenhados os destinos. A vida advém quando se pinta para fora das linhas.
A Prudência faz vista grossa.
Ébria no venéfico vinho da imaginação.
O sabor a sangue assombra sítios de sacrifício. Orlas onde, no vocabulário alquímico, se é devorado
por dragões: o fogo dos seus ventres é uma coordenada que
transcende o tempo.
Ainda morno, o xamanismo entalhado em algares cria
ondas de calor. Saurópsides e artiodáctilos são tótemes frequentes em
mitos fundacionais. Serpentes e cervídeos – cornos e cobras desbulham
várias vezes a pele.
Nas oficinas dos alquimistas há sempre répteis
pendurados nos tectos. Há répteis pendurados em igrejas. Crocodilos conspícuos: reptante fé que a repetência
anediou e tornou invisível. Gnósticos ofitas acreditavam que Cristo e a Serpente
eram o mesmo ser; e, com efeito, ecdise e crucificação são alegorias de
ressurreição.
São sinais sabidos: escamíferas marcas de santidade –
antídotos artesanais que são oferecidos.
Diz a esta pedra que se transforme em pão. Mas a
qual pedra e que tipo de pão?...
O genoma da história é simétrico: ela rima e os mitos
repetem-se. O profeta Daniel eliminou um dragão dando-lhe um bolo de breu,
gordura e cabelos. Segundo Sérvio, as cobras habitam nas águas e as serpentes
sobre a terra. Os dragões, todavia, vivem em templos. Num único templo nunca coexistirão
dois dragões.
A pedra que o chamado Diabo e Satanás, o Grande
Dragão, ofertou no deserto foi um bolo análogo ao de Daniel, feito para banir o
dragão Cristo do templo de que o primeiro era príncipe: este mundo.
Porém, o templo de Cristo não era este mundo. A serpente
desta terra equivocou-se: o reino não era daqui. O dragão de David obumbrava outro
templo. Interrogações que, à laia de locais, ainda podem ser
visitadas.
Sai desse homem, espírito impuro. Qual é o teu
nome?
Respostas estioladas como imagens expostas ao sol.
Derrubai este templo e em três dias o levantarei. O
templo, afinal, era o corpo: antropomórfico ponto de fuga de um reino feito de verbo. Fármacos sacrificiais: carbunculoses no leito de um recendente
rio de peçonha.
Em meu nome expulsarão demónios, apanharão
serpentes com as mãos e se beberem veneno não morrerão.
Apanharão serpentes com as mãos. Ao toque, as serpentes
são secas e duras; espécie de voltagem tornada carne, animais de vocação
eléctrica, de visão termostática. Os seus silvos ardem como choques na pele. Há que confundi-las, descendo o catre do possesso por
um único buraco que depois é tapado: Para demónios e espectros, a lei é
esta: por onde entramos, somos extirpados. Livres de entrar e escravos para
sair.
Será o homem como os demónios? Cativo da porta por
onde entrou? Imobilizado no seu livre-arbítrio quanto um possuído decumbente
num catre? A multidão é uma escultura viva, tão barroca no seu
dinamismo quanto água ou estrelas em movimento.
Tornei-me um estranho para os meus irmãos.
Dois inequívocos sinais comprovam, a infecção de veneno
espiritual que é a possessão demoníaca: glossolalia e a forense aptidão de
revelar aquilo que está oculto.
Sangue que aliena o Diabo.
Mercúrio transudando da caldeira.
Vê o behemot que criei como a ti.
É a obra-prima de Deus.
Os animais do campo divertem-se à sua volta.
Acaso te dirigirá palavras ternas?
Algo orfeico e acre infiltra a quadricular moldura que
nos cinge.
Quem lhe furaria as narinas para passar argolas?
Os seus ossos são como tubos de bronze, a sua estrutura
como barras de ferro.
Põe-lhe a mão em cima.
Vais lembrar-te da luta e não repetirás.
Que luta é esta?
Que téssera se oculta nesta tapeçaria?
Que gramatical tenebrário?
Altivez argustica. Soberba algébrica - padrão
opocéfalo que alucina e cheira a latim.
Este é, afinal de contas, o verdadeiro rosto. Caos. Um
anti-jardim: prepóstero paraíso onde pastejam os porcos.
Reveste-te, pois, de glória e majestade.
E, então, também eu te louvarei, se triunfares pela
força da tua mão.
Brincarás com ele como um pássaro?
Quando se atira uma pedra à agua, as ondas param longe
nas margens. No horizonte.
O horizonte do peregrino está pejado de cruzes.
Sob o matiz submarino de lápis-lazúli, a coroa de
espinhos parece feita de coral: argamassa aquática de agulhas e pólipos
Pela força da tua mão.
Em cada mão um ponto final.
Dois pontos.
A morte é sempre declarativa.
(Imagens: detalhes de painéis de azulejos do Convento de São Paulo da Serra d'Ossa. Fotos do autor.)