quarta-feira, 15 de maio de 2019

O reencantamento do futuro


A primeira vez que vi a personagem Pikachu foi nos idos de 90 no jornal Blitz, num artigo de Azrael Beeblebrox: recortei a foto do boneco e colei-na com fita-cola na parede do quarto, junto ao computador. Fiquei fascinado pelo murídeo amarelo. Avançando uns anos: vi alguns desenhos-animados dos Pokémon, quando chegaram à SIC, nos sábados ou nos domingos de manhã, mas não fiquei fã, apesar de achar muita graça a alguns bonecos, como o Bulbasaur. Porém, o Pikachu é o meu preferido — é giríssimo!
O George Orwell, que era um incansável escritor de cartas — marcadas com o selo da sua argúcia e, também, marcadas pela sua mente desultória —, interrompeu a tese que discorria a um amigo sobre a inquisição espanhola numa dessas epístolas para lhe falar sobre o ouriço-cacheiro que costumava vir vê-lo à casa-de-banho da sua propriedade rural na Escócia. Numa das páginas dos seus diários interrompeu outro assunto, dir-se-ia importante, como política ou literatura, para manifestar preocupação com a diarreia da sua cabra Muriel: que nem o parafuso de Arquimedes, que sugava água dos porões dos navios para a lançar novamente no mar, a animalidade hóspede da urbe era uma força que desenroscava Orwell desse bioma de betão para o devolver à pureza selvagem de um tempo enraizado no húmus. A Orwell, angustiava-o a contemporaneidade motorizada e voraz: preferia a beleza espartana das escarpas escocesas, encrustadas de papagaios-do-mar e onde era possível receber visitas de ouriços-cacheiros.
É provável que a atracção que temos pelos Pokémon se relacione com o facto desta camarilha de peluche e escamas ser para nós aquilo que os ouriços e restante fungagá das Terras Altas foi para Orwell: uma ligação com uma perdida primavera, na qual murídeos amarelos e bicharada reptiliana mesclada de vegetal nos entra pela casa através dos ecrãs dos telemóveis enquanto se joga ao Pokémon Go — ali estão elas, as criaturas, atrás dos nossos móveis, dos autoritários postes de iluminação pública e dos sorumbáticos bancos de jardim. Os safaris de Orwell e os nossos são da mesma ordem: rituais salvíficos, em meias-partes teatrais e sinceros, que têm como objectivo reencantar o mundo. Para o escritor inglês, as árvores, as borboletas, os peixes e os sapos era poéticas ligações ao mundo real, ao mundo que interessava; hoje, as borboletas, os peixes e os sapos são virtuais, de guardar no bolso, projectados por satélite às poderosas caixas de ressonância que mantemos ligadas a todo o momento. Nem poderia ser de outro modo, pois doenças da imaginação curam-se com remédios imaginários. Dos peluches na cama para os Pokémon nos telemóveis: trata-se de imanentizar no mundo digital a dimensão mítica que estava presente em outros campos, como o da arte e o da espiritualidade. Nessa esfera de odor a bolachas acabadas de sair do forno e decoradas pelas cores criselefantinas das longas tardes de Verão, os animais falam connosco e nós contamos-lhes todos os nossos segredos.
A única conclusão que se pode formular é, pois, a de que o desejo de encantar desta forma a matriz digital comprova a profunda necessidade humana de se sair de si e, nesse aspecto, o animal é totémico, por excelência. Os primeiros astronautas levaram ursos de peluche para o espaço: um ursinho é abraçado por um peregrino no mortífero deserto de vácuo e, nesse instante, dissipa-se o terror cósmico de ver o planeta ao longe.
Pika, pika.