A primeira vez que ouvi falar na realizadora americana Kathryn Bigelow
foi quando li um ensaio sobre o seu filme Blue Steel, integrado no
livro The Cinematic Body, do filósofo americano Steven Shaviro, que
comprei em 1996 na livraria-café Laie de Barcelona (curiosamente, foi
nessa vez que aí comprei um disco com as músicas compostas pelo filósofo
alemão Friedrich Nietzsche, que antes de filosofar quis ser músico —
até hoje, quando penso em Nietzsche lembro-me do Verão ventoso de
Barcelona e das ruas estranhamente desertas naquela hora da tarde).
Nesse tempo não conhecia a obra de Bigelow, mas o texto abriu o meu interesse — um pouco mais à frente iria ver alguns dos seus filmes, como Near Dark, Point Break e Strange Days (por partida do destino, ainda não vi Blue Steel).
Tal como os filmes que citei na linha anterior, só vi The Hurt Locker uma vez, há uns anos, mas é um filme em que o comportamento obsessivo do protagonista parece comunicar com uma perdida classe de personagens oriundas de uma literatura — bem masculina — feita de pungentes e desarmantes relatos de experiências-limite.
Com efeito, é nas páginas de Joseph Conrad que encontro o mais perfeito simbionte da criatura cinematografada por Bigelow — no conto The Secret Sharer, contido no livro 'Twixt Land and Sea, um capitão retido em terra há demasiado tempo diz o seguinte ao, finalmente, regressar ao mar: «De repente, regozijei-me com a grande segurança do mar, em comparação com a inquietação da terra, com a escolha de uma vida sem tentações, que não apresenta problemas inquietantes, e investida de uma beleza moral elementar pela absoluta simplicidade do seu apelo e pela singeleza do seu propósito.» Esta é a chave para desencriptar a conduta do oficial desarmador de explosivos que, no filme de Bigelow, incapaz de relacionar-se com a complexidade do dia-a-dia familiar, decide tudo abandonar para seguir em exclusivo a sua carreira suicidária.
Ao contrário do que se poderia pensar (de modo natural, mas superficial), é a fuga para a «singeleza do seu propósito» que o empurra para o cenário de guerra, no qual sobreviver ou morrer são as únicas hipóteses possíveis. Não é, pois, o suposto aborrecimento da vida doméstica que desengatilha um novo alistamento, mas a inquietação diante de um mundo despido da «beleza moral elementar» — entomológica, até — das experiências-limite.
A domesticidade suburbana, esfera que roda num eixo demasiado imprevisível, pleno de afectos e preocupações, apresenta-se mais hostil ao veterano que os panoramas infernais da guerra. O mar para o capitão e as explosões para o soldado são lugares de culto da mesma ordem que um mosteiro para um monge. O facto desta sensibilidade ascética masculina ter sido tão bem transplantada para a tela por Bigelow testemunha todo o seu talento como cineasta.
A coincidência do livro e do disco comprados nesse dia prolonga-se no carácter nietzschiano desta personagem: aquilo que ela procura na intimidade com a bomba, eu diria que Nietzsche procurou no contacto com a escrita — extraordinariamente influenciado pela sua experiência como compositor, o texto de Nietzsche quer desarmar explosivos através do engenho filosófico mais temerário. Une-os o argênteo cordão da «absoluta simplicidade do seu apelo» e «a singeleza do seu propósito».
Nesse tempo não conhecia a obra de Bigelow, mas o texto abriu o meu interesse — um pouco mais à frente iria ver alguns dos seus filmes, como Near Dark, Point Break e Strange Days (por partida do destino, ainda não vi Blue Steel).
Tal como os filmes que citei na linha anterior, só vi The Hurt Locker uma vez, há uns anos, mas é um filme em que o comportamento obsessivo do protagonista parece comunicar com uma perdida classe de personagens oriundas de uma literatura — bem masculina — feita de pungentes e desarmantes relatos de experiências-limite.
Com efeito, é nas páginas de Joseph Conrad que encontro o mais perfeito simbionte da criatura cinematografada por Bigelow — no conto The Secret Sharer, contido no livro 'Twixt Land and Sea, um capitão retido em terra há demasiado tempo diz o seguinte ao, finalmente, regressar ao mar: «De repente, regozijei-me com a grande segurança do mar, em comparação com a inquietação da terra, com a escolha de uma vida sem tentações, que não apresenta problemas inquietantes, e investida de uma beleza moral elementar pela absoluta simplicidade do seu apelo e pela singeleza do seu propósito.» Esta é a chave para desencriptar a conduta do oficial desarmador de explosivos que, no filme de Bigelow, incapaz de relacionar-se com a complexidade do dia-a-dia familiar, decide tudo abandonar para seguir em exclusivo a sua carreira suicidária.
Ao contrário do que se poderia pensar (de modo natural, mas superficial), é a fuga para a «singeleza do seu propósito» que o empurra para o cenário de guerra, no qual sobreviver ou morrer são as únicas hipóteses possíveis. Não é, pois, o suposto aborrecimento da vida doméstica que desengatilha um novo alistamento, mas a inquietação diante de um mundo despido da «beleza moral elementar» — entomológica, até — das experiências-limite.
A domesticidade suburbana, esfera que roda num eixo demasiado imprevisível, pleno de afectos e preocupações, apresenta-se mais hostil ao veterano que os panoramas infernais da guerra. O mar para o capitão e as explosões para o soldado são lugares de culto da mesma ordem que um mosteiro para um monge. O facto desta sensibilidade ascética masculina ter sido tão bem transplantada para a tela por Bigelow testemunha todo o seu talento como cineasta.
A coincidência do livro e do disco comprados nesse dia prolonga-se no carácter nietzschiano desta personagem: aquilo que ela procura na intimidade com a bomba, eu diria que Nietzsche procurou no contacto com a escrita — extraordinariamente influenciado pela sua experiência como compositor, o texto de Nietzsche quer desarmar explosivos através do engenho filosófico mais temerário. Une-os o argênteo cordão da «absoluta simplicidade do seu apelo» e «a singeleza do seu propósito».