Sob a minha sinestesia, sempre que penso na palavra rā visualizo um
matiz musgoso de verde e ouço, concomitantemente, o som de água em
movimento, mas quando penso na palavra sapo penso na cor azul.
O primeiro caso explicar-se-á da seguinte forma: quando era criança, muito novinho, no final de uma tarde de Verão passada a preguiçar no mato — com direito a piquenique —, descobri uma rã que coaxava num rarefeito riacho forrado de folhas: em rigor, descobri a presença da rã, pois somente a ouvia. Nesse instante, quando avancei devagar para a margem, guiado apenas pelo lusco-fusco polvilhado na água, a rã calou-se e mergulhou ruidosamente, como uma pedra atirada para o fundo. Os cheiros da terra e das cascas das árvores, misturados com a tíbia reverberação do pulo da rã são insolventes na mente. Porém, não consigo explicar por que razão sapo e azul o são, do mesmo modo que não tenho explicação para as diferentes cores que atribuo aos dias da semana, aos números, e às texturas que, na minha imaginação, têm certas palavras.
Tenho predilecção pelas que começam com a sonoridade se, mesmo que a grafia as desacompanhe, como celofane — aos meus ouvidos, das palavras mais belas do nosso léxico. Para tal efeito ascende um tipo de hipálage, cognato daquela repetição que retira significado aos nomes e os transmuta em estrangeirismos — o mesmo fenómeno ocorre com rostos e objectos. Assim, a palavra sapo é bonita, mesmo que o animal que denomina não invoque, de imediato, análoga apreciação. É possível que, para mim, sapo seja azul, porque o sabão costuma ser azul — e ambos os substantivos soam similares ao tiro de partida. Sapo poderia ser onomatopeia para aperto de mão ou para quando se atira um livro fechado para cima de uma mesa — sons afáveis, que exprimem satisfação. Um som sincero, que nunca ludibria, que começa com um sorriso, num a aberto, e termina com um afago, num o resoluto, mas aveludado.
Da mesma família de associações é a palavra santo; contudo, esta e sapo são antitéticas. A samarobrivense Santa Ulfia de Amiens tem como tótemes os anfíbios que não a deixavam orar, mas é possivel entrosar santas e sapos na hagiografia da ibérica Wilgefortis, representada com barba no seu martírio crucificado, pois não é o sapo afamado de metamorfosear o sexo, graças ao seu órgão de Bidder, descoberto pelo portador de uma das mais singulares barbas do seu tempo?
Pogonomorfose. Sinestesia. Santidade.
O nome colectivo poderia ser verdade, mas só ouço uma rã a mergulhar no verde-musgo.
Existem rãs azuis em Lisboa, todavia: pintadas por Rafael Bordalo Pinheiro para a neo-gótica Tabacaria Mónaco, na Praça D. Pedro IV. A esta distância, não é credível que Rosendo Carvalheira, o arquitecto, que também projectou o restaurante Abadia, situado a poucos minutos de distância da tabacaria, tenha alguma vez pensado que as antropomórficas ranas bordalesas se agigantassem à sua própria fama, mas às cidades, que estão vivas, acometem-se-lhes as suas próprias sinestesias. Há anos, no decurso das minhas peregrinações psicogeográficas, descobri esta coincidência entre a minha e a da cidade.
A coincidência é o órgão de Bidder da memória.
O primeiro caso explicar-se-á da seguinte forma: quando era criança, muito novinho, no final de uma tarde de Verão passada a preguiçar no mato — com direito a piquenique —, descobri uma rã que coaxava num rarefeito riacho forrado de folhas: em rigor, descobri a presença da rã, pois somente a ouvia. Nesse instante, quando avancei devagar para a margem, guiado apenas pelo lusco-fusco polvilhado na água, a rã calou-se e mergulhou ruidosamente, como uma pedra atirada para o fundo. Os cheiros da terra e das cascas das árvores, misturados com a tíbia reverberação do pulo da rã são insolventes na mente. Porém, não consigo explicar por que razão sapo e azul o são, do mesmo modo que não tenho explicação para as diferentes cores que atribuo aos dias da semana, aos números, e às texturas que, na minha imaginação, têm certas palavras.
Tenho predilecção pelas que começam com a sonoridade se, mesmo que a grafia as desacompanhe, como celofane — aos meus ouvidos, das palavras mais belas do nosso léxico. Para tal efeito ascende um tipo de hipálage, cognato daquela repetição que retira significado aos nomes e os transmuta em estrangeirismos — o mesmo fenómeno ocorre com rostos e objectos. Assim, a palavra sapo é bonita, mesmo que o animal que denomina não invoque, de imediato, análoga apreciação. É possível que, para mim, sapo seja azul, porque o sabão costuma ser azul — e ambos os substantivos soam similares ao tiro de partida. Sapo poderia ser onomatopeia para aperto de mão ou para quando se atira um livro fechado para cima de uma mesa — sons afáveis, que exprimem satisfação. Um som sincero, que nunca ludibria, que começa com um sorriso, num a aberto, e termina com um afago, num o resoluto, mas aveludado.
Da mesma família de associações é a palavra santo; contudo, esta e sapo são antitéticas. A samarobrivense Santa Ulfia de Amiens tem como tótemes os anfíbios que não a deixavam orar, mas é possivel entrosar santas e sapos na hagiografia da ibérica Wilgefortis, representada com barba no seu martírio crucificado, pois não é o sapo afamado de metamorfosear o sexo, graças ao seu órgão de Bidder, descoberto pelo portador de uma das mais singulares barbas do seu tempo?
Pogonomorfose. Sinestesia. Santidade.
O nome colectivo poderia ser verdade, mas só ouço uma rã a mergulhar no verde-musgo.
Existem rãs azuis em Lisboa, todavia: pintadas por Rafael Bordalo Pinheiro para a neo-gótica Tabacaria Mónaco, na Praça D. Pedro IV. A esta distância, não é credível que Rosendo Carvalheira, o arquitecto, que também projectou o restaurante Abadia, situado a poucos minutos de distância da tabacaria, tenha alguma vez pensado que as antropomórficas ranas bordalesas se agigantassem à sua própria fama, mas às cidades, que estão vivas, acometem-se-lhes as suas próprias sinestesias. Há anos, no decurso das minhas peregrinações psicogeográficas, descobri esta coincidência entre a minha e a da cidade.
A coincidência é o órgão de Bidder da memória.