Estamos tão acostumados a ver graciosos cavalos criados
para corridas e alardes acrobáticos que é fácil esquecer que os cavalos comuns,
usados para os mais exigentes trabalhos agrícolas, chegavam a medir quase dois
metros ao garrote e pesavam até uma tonelada.
Foram estes os cavalos megafáunicos que batalharam
na Primeira Grande Guerra, a derradeira em que a cavalaria teve papel
preponderante: relinchantes tanques de carne e osso que deram lugar aos troantes
tanques feitos de metal e fogo. Os cavalos foram uma parte importante da
paisagem urbana de Lisboa (assim como as carroças de lixo puxadas por bois, que
se mantiveram no activo até à guinada para o século XX), mas com o advento do
automóvel aposentaram-se para se dedicar ao tipo de provas de dexteridade
equestre que os antigos muçulmanos de Al-Uxbuna chamavam de fantaziiâ; ainda assim, continuando a dar
rendimentos aos incontáveis correeiros olisiponenses. Até há poucos anos
situada ao lado da casa dos oitocentistas Pastéis de Belém, a pitoresca loja
Barroso Sapateiros foi a melhor – e a última – sapataria de Lisboa
especializada em calçado para cavalaria, reunindo em mais de cem anos de trabalho
uma clientela nacional e internacional de enorme prestígio.
Encontrar as origens do cavalo moderno (Equus caballus) é uma empreitada
complexa: hoje sabe-se que é uma espécie originalmente americana que chegou à
Europa durante a era do Pleistoceno através do desencoberto Estreito de Bering
que ligava a América do Norte à Ásia. A espécie que se pensa ter sido a
primeira a fazer essa travessia foi a Equus
simplicidens, também chamada de zebra americana: esta espécie, que é a mais
antiga representante do género Equus,
é a “tetravó” dos primitivos cavalos selvagens asiáticos – dos quais descendem
o extinto Tarpan e o recuperado Cavalo de Przewalski. Existe uma ligação
directa de parentesco, comprovada por análise ao ADN mitocondrial, entre essa pioneira
zebra americana e algumas das espécies de primordiais cavalos peninsulares
(grupo Equus stenonis). A zebra
americana é, analogamente, a antepassada das diversas espécies de zebras
africanas.
Na realidade, estas só se chamam zebras por culpa
dos zebros: foram os nossos mareantes quatrocentistas que assim as apelidaram
por achá-las parecidas com esses cavalinhos ou burrinhos tipicamente ibéricos –
como os que antigamente eram criados na vila de Benavente, no distrito de
Santarém. Ora, quando se quer menorizar alguma coisa em língua portuguesa é
habitual trocar-lhe o género: se o conceito original é masculino, o seu epígono
passa a feminino – e vice-versa. Deste modo, ao chamar zebra ao listrado
equídeo – que nasce preto antes de entremear-se de branco –, catalogou-se-lhe
uma disposição de subalternidade em relação ao zebro: passou a ser uma zebra; em suma, um zebro de segunda categoria. Não obstante, no século XII o nome
escrevia-se zevro, como aparece grafado no foral dado a Lisboa por D. Afonso
Henriques em 1179 – e a pele destes zevros, longe de listrada, já era muito
valorizada. Independentemente da irrequietude infernal que instiga as zebras foi
um português que, em outras longitudes, ficou famoso por ter domesticado um
desses diabretes dicromáticos: entre 1914 e 1924, enquanto foi cônsul de
Portugal em Nairobi, capital do Quénia, o médico Rosendo Ayres Ribeiro (goês de
ascendência portuguesa, nascido em 1871) fazia domicílios montado numa zebra
que ele próprio domesticara, tornando-se uma respeitadíssima, mas excêntrica,
figura local. Inscrita esta excepção, elucide-se que as zombeteiras zebras são,
em geral, tão ariscas a mansidões que recusam até relinchar, preferindo gargalhar
aos gorgolejos.
Até 1776, no Palácio das Leoneiras (Palácio
Nacional de Belém), D. José I foi reunindo no seu Pátio dos Bichos mais de uma
dezena de zebras (com nomes pitorescos, como Açucena, Carapeta e Verboneta), descendentes
de um par enviado de Angola. A ménagerie
josefina compilava animais de toda a parte do império português, desde leões (dos
quais advém a alcunha do local), um tapir, um porco-espinho, alguns papagaios, um
elefante, um veado, ursos e diversas aves, entre outras espécies. Há muito que
as zebras josefinas desapareceram desse sítio (no fim do século XVIII já não existia nenhuma), mas a toponímia local recorda-as
numa ruela encoberta pelo casario da Calçada da Ajuda, a um coice de distância
do antigo Museu Nacional dos Coches que ocupa o local onde se situaram as
antigas cocheiras do Palácio das Leoneiras.
É a Travessa das Zebras, na qual, em 1904, um
clube futebolístico fundado em Belém, o Sport Lisboa, constituiu sede oficial: quatro
anos depois, ligou-se a um clube de ciclismo e atletismo chamado Sport Club
Benfica e dessa fusão nasceu o Sport Lisboa e Benfica. De acrescentar, já que o
discurso desembocou no futebol, que, em gíria futebolística brasileira, a
expressão “deu zebra” classifica uma partida de resultado indesejado...
Do futebol quase todos falam, já se sabe – mas as infelizes
zebras só são lembradas quando o desfecho é aziago?
Dá que pensar.