Da
mesma maneira que as pessoas, a história nem sempre diz aquilo que pensa; daí
ser preciso reparar nos pormenores. Um dos detalhes mais significativos do ascendente
de Leni Riefenstahl sobre Adolf Hitler é visível por poucos segundos na segunda
parte do documentário Olympia,
intitulada Festival de Beleza: passados
vinte minutos desde o início, durante a sequência da competição de vela,
podemos ver um atleta vestido de preto a manobrar com energia o velame do seu
barco enquanto fuma um cigarro. Enquadrado com esmero, o plano exsuda solicitude
para com o tripulante tabagista que ocupa a dianteira da composição e nela tudo
concorre para que o cigarro refulja como um pirilampo. A sempre sartorial Riefenstahl
(embora – por culpa da sua inexpressão cubiculária – nunca se libertando de
invocar uma peculiar imagem a que, posteriormente, Russell Hoban daria existência
no romance Turtle Diary para caracterizar
a quarentona Neaera H.: «parece a mulher de alguém sem o alguém») não se coíbia
de ser fotografada de cigarro na boca, num contexto político hostil para
fumadores: Hitler abominava tabaco (vira grandes fumadores, como o pai, mais o
mentor político Dietrich Eckart, morrer tormentosamente) e as campanhas
anti-tabagistas nacionais-socialistas eram as mais duras até à data.
Com
efeito, Hitler orgulhava-se do facto de ele e dois ditadores seus próximos,
Mussolini e Franco, não fumarem, ao mesmo tempo que líderes adversários,
Churchill, Roosevelt e Estaline, não terem vergonha de mostrar-se em público
como repugnantes viciados em charutos e cigarros. Profundo conhecedor e grande admirador
de Westerns, Hitler gostava de definir o tabaco como «a fúria do Pele-Vermelha
contra o Homem Branco, a vingança por todo o uísque que lhe fora dado a beber».
Descrita como a medicina do estado, promovida por Himmler e Hess, a recrudescência
da homeopatia acompanhou a guerra nacional-socialista contra a outrora chamada
erva-santa; em principal, a homeopatia era utilizada contra casos de cancro causados
por uso de tabaco, diagnósticos em que a iátrica nazi se especializou. A fumadora
Leni, contratada por Hitler para lenificar (nunca um verbo terá feito tanto
sentido como neste caso) os estragos morais provocados pela exibição do filme A Oeste Nada de Novo, de Lewis Milestone
(baseado no romance do escritor alemão Erich Maria Remarque, veterano da
Primeira Grande Guerra), realizou com enorme êxito dois documentários laudatórios
da cosmovisão nacional-socialista, Triunfo
da Vontade e Olympia, tornando-se,
inclusive, uma influente mensageira do regime nazi em Hollywood, onde alguns
grandes estúdios aquiesceram a colaborar regularmente com a agenda política
alemã.
Em
simetria, outra substância que Hitler considerava venenosa para a população adolescente
era a cafeína – afortunadamente, a Alemanha havia inventado há umas décadas a
descafeinação, processo que, a partir dos anos 30, foi sendo alvo de sucessivas
pressões administrativas para tornar-se mais biológico.
Em contraste
total com os ideais homeopáticos e holísticos dos protagonistas nacionais-socialistas,
outros alemães alimentaram no passado relações menos obstinadas com os seus
vícios – e o exemplo que resgato neste momento é o melhor de todos, porque mata
dois coelhos com uma só cajadada: Bach, matemaníaco compositor barroco, autor
de ascencionais e majestosas sinfonias e sonatas, escreveu, precisamente, divertidas cantatas para
celebrar com alegria o seu amor pelo café e pelo tabaco. Inveterado bebedor de
café (e amante de vinho), em bachica (ou báquica) verve escreveu versos como
«café, café, tenho de bebê-lo / se alguém me quer bem / então dê-me café», mas de
igual modo não dispensava o cachimbo: «é sempre com o meu tabaco / que tenho as
melhores ideias / e contente fumarei muito / na terra, no mar e em casa». Na
verdade, o texto da cantata do tabaco constrói uma alegoria muito agradável
entre a fragilidade do cachimbo, feito de barro, e a debilidade humana, também proveniente
da argila: homem e cachimbo estão destinados a partir-se, a repulverizar-se no
retorno à terra, mas felizmente serão o aconchego um do outro até chegar esse
destino.