Uma pintura que considero emocionante: A
Chávena de Chá, pintada por Columbano Bordalo Pinheiro, em 1898, e
exposta pela primeira vez na Exposição Extraordinária do Grémio
Artístico, comemorativa do Quarto Centenário do Descobrimento do Caminho
Marítimo para a Índia. Foi a terceira vez que Columbano expôs no Grémio
Artístico; dois anos depois, levaria A Chávena de Chá à Exposição
Universal, em Paris, na qual foi premiado com uma medalha de ouro. Hoje
refugiada no Museu do Chiado, a
tasseomante retratada neste quadro é Emília, mulher e modelo de
Columbano (podemos vê-la, por exemplo, como Vénus, desnuda numa das
telas alusivas ao Concílio dos Deuses, referentes à obra de Camões,
também no Museu do Chiado). Esta composição sombria evoca-me outra, de
igual modo belíssima, mas musical e da autoria do polaco Henryk Gorécki:
a Symfonia Piesni Zalosnych (Sinfonia de Canções Tristes), que nos
fala da angústia profunda de diversas mães que perderam os seus filhos.
Retirada do samovar, a água fervente funde-se com as folhas de chá para
formular feitios secretos que Emília, musa e Vénus de Columbano,
perscruta - que sortilégios se esvaecem no vapor sem serem decifrados,
que mensagens permanecerão para sempre perdidas, sem um destinatário? E a
Grande Guerra ali tão perto. Convido-vos a olharem com atenção para
esta imagem, ouvindo, ao mesmo tempo, a pungente peça de Gorécki. Um
precioso momento de cultura para enriquecer o vosso dia, porque a
cultura - a verdadeira - continua a fazer muita falta a todos nós; em
principal, nesta altura.
terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
Encontro com os leitores em Beja no próximo Sábado
No próximo Sábado, dia 2 de Março, às 18H00, estarei na Bedeteca de Beja (Casa da Cultura de Beja, na Rua Luís de Camões), juntamente com Osvaldo Medina e Mário Freitas, para um encontro com os leitores em torno de Mucha: livro de banda desenhada, editado pela Kingpin Books (2009), com argumento meu e arte de Osvaldo Medina e Mário Freitas. No mesmo dia, inaugura uma exposição com pranchas originais de Mucha.
Leitores e fãs de Beja, passem a palavra e apareçam: será uma boa oportunidade para conversarmos e para assinar os vossos livros.
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
Um retrato do nosso tempo
Um dos mais emocionantes, pungentes e trágicos
retratos de quem, entre a maioria despreocupada ou alinhada com o
sistema, é o único a interpretar correctamente os sinais do devir
catastrófico que se aproxima: Stańczyk (1862) do artista polaco Jan
Matejko.
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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013
Uma questão de saúde mental
Com mais de cinco mil partilhas, circula pelo
Facebook um apelo escrito por uma utilizadora chamada Marlene Melo e que
denuncia uma situação por ela testemunhada ao fim da tarde de ontem num
comboio que faz o trajecto entre o Porto e Aveiro: segundo essa
denúncia, o revisor do comboio reclamou com um rapaz por este não ter
comprado bilhete para a cadela que transportava por uma trela e, em
sequência dessa irregularidade, chamou a polícia que, entrando no
comboio, entretanto parado na estação
ferroviária de Estarreja, efectuou com força excessiva a detenção do
rapaz. O tom melodramático e pouco informativo da dita denúncia está
longe de consistir num registo esclarecedor sobre seja o que for, mas,
no que diz respeito a isso, cada qual escreve como sabe e a mais não é
obrigado. O que me revolta é o trecho que transcrevo em seguida,
introduzido pela utilizadora Marlene Melo depois de conjecturar sobre
como gostaria de ter visto a cadela do rapaz a transformar-se «(como nos filmes) numa leõa
[sic]» para estraçalhar os polícias e o revisor no imediato momento.
Escreve a autora da denúncia que: «Estou farta de chorar porque
realmente estamos entregues a alguns. Eu pergunto será que os dirigentes
da CP pactuam com este tipo de situações, não tem nada a dizer? Será
que os polícias não deveriam ter uma parte pedagógica? Não deveriam ser
mais profissionais? Mais Humanos? Alguém os tratou mal? Não. Gostava de
referir que em Ovar entra uma Sra Romena que cheira pior que um animal
selvagem ou abandonado ou quase morto (todas as pessoas que fazem este
trajeto sabem do que estou a falar) e já foi pedido a muitos revisores
que não a deixassem entrar por uma questão de sáude pública, no entanto,
a resposta é: tem bilhete! Pois... mas eu prefiro viajar com uma
cadelinha.»
Desde quando é que nos transformámos em completos nazis?
Desde quando é que o dito amor aos animais passou a servir de plataforma para a desumanização do Outro?
É revoltante ler um texto cheio de lamentações desta natureza sobre uma cadela posta fora de um comboio (e que, aparentemente, nem maltratada foi, ao contrário do dono) e encontrar este recorte de vil desprezo, mesquinha xenofobia e extrema desumanidade em que uma pessoa é caracterizada como sendo pior que «um animal selvagem». Com efeito, sempre que foi preciso desumanizar o Outro - aqueles que têm uma pele de cor diferente da nossa, aqueles que professam uma religião diferente da nossa ou que não professam religião nenhuma, aqueles que têm uma orientação sexual diferente da nossa, aqueles que possuem deficiências mentais e físicas, aqueles que, em suma, são sempre diferentes de uma maioria -, fez-se isso retirando-lhe o estatuto de ser humano para o categorizar como sendo um animal, um rafeiro, um parasita, uma praga. A linguagem da intolerância hegemónica é conhecida e a estratégia é sempre a mesma: para que seja aceitável a guetização e o extermínio dos seres humanos que se quer esconder ou eliminar é sempre preciso ensinar a população a observá-los como se eles fossem sub-humanos, como se eles fossem animais. A história está recheada de exemplos de como as sociedades que sobrevalorizaram o amor pelos animais em relação ao amor pelas pessoas, antropomorfizando os animais e desumanizando as pessoas, foram as sociedades nas quais se desenvolveram os piores crimes imagináveis contra minorias étnicas e religiosas. Uma vez desumanizado, o ser humano pode ser abatido como «um animal selvagem», para usar as palavras de Marlene Melo. Não é, pois, original que esta utilizadora do Facebook tenha escolhido essas palavras: a desumanização de uma cidadã que 1) é estrangeira e 2) é pobre só pode ser realizada rebaixando-a para o estatuto de «animal selvagem». Até aqui se compreende como entre os próprios animais se faz uma perigosa distinção: separam-se os animais em duas classes, os domésticos, como a cadela «super meiga e muito novinha», e os «selvagens», que cheiram mal e são indesejáveis.
Na alemanha nazi, o amor aos animais foi sobrevalorizado em relação ao amor pelas pessoas com os resultados trágicos que se conhece. Göring acabou com a investigação científica com base nas experiências em animais, mas a ciência nazi não retrocedeu, porque as vítimas humanas trincafiadas nos campos de concentração e de extermínio consistiram num número mais do que suficiente de cobaias para as experiências mais dolorosas, aviltantes e desumanas. Ao mesmo tempo que os nazis proibiam até que as lagostas fossem cozidas sem serem anestesiadas primeiro, os comandantes da SS davam cachorros aos noviços para estes cuidarem deles durante os anos da recruta: logo que se formavam, eram obrigados a matar os cães, já crescidos - era assim que os gangsters da SS turvavam o julgamento moral dos seus jovens torcionários para que, daí em diante, matassem seres humanos com total à-vontade. Aqueles que se chocam hoje ao verem uma cadela ser posta fora do comboio, mas que se dispõem com rapidez a chamar de «animal selvagem» uma cidadã que viaja com eles, porque acham que ela «cheira pior que um animal selvagem ou abandonado ou quase morto» e que até nem queriam deixar entrar no comboio «por uma questão de sáude pública», apesar dela, ainda por cima, ter bilhete, comportam-se exactamente como os nazis do século passado. A vossa intolerância, xenofobia e estupidez é uma questão de saúde mental.
Confunde-se o amor pelos animais com o amor doentio por cães e gatos, porque os cães e os gatos são animais giros: foram criados artificialmente, durante milénios de cruzamentos, para conservarem na maturidade sexual as características da infância. O cão adulto é um lobo bebé: os lobos adultos não brincam, não ladram (ladrar é linguagem de lobo bebé) e não manifestam nenhum comportamento demonstrado pelos cães, porque os lobos são animais adultos e os cães, mesmo os adultos, foram apurados para serem bebés - assim como todas as espécies de animais domésticos que partilham o nosso espaço, desde os domésticos até aos criados para consumo. São espécies transformadas pela neotenia: o estado de conservar as caraterísticas físicas e comportamentais da infância após a maturação sexual. É por essa razão que achamos esses animais giros, porque vão ao encontro daquilo que, em bebés humanos, nos desperta sentimentos de amor e desejos de protecção. Os criadores de personagens de banda desenhada e de animação sabem-no muito bem e todas as personagens de grande sucesso foram desenhadas de acordo com esses cânones e proporções: estatura pequena, com formas arredondadas; cabeças grandes com olhos também grandes, muito próximos um do outro, e bocas e narizes pequenos; mãos e pés grandes que dão um ar desajeitado e patusco. Estas são as caraterísticas dos nossos animais domésticos e é por esta razão que existem indivíduos que os adoram de modo doentio: estão, literalmente, "pedrados" com uma sobredosagem de fofice. Mas essa sobredosagem termina onde a neotenia acaba, porque já se viu que existem os «animais selvagens» que não são criaturas «super meigas e muito novinhas». Estes animais, ao fim e ao cabo, são como a cidadã romena que se quer fora do comboio: são os Outros.
Neste momento, poderão discordar de mim, mas lembrem-se bem do que vos vou dizer: desconfiem e tenham muito cuidado com quem se mostra insensível e intolerante diante da miséria e do sofrimento dos seres humanos, mas mostre um amor doentio e cego por (algumas) espécies animais.
Desde quando é que nos transformámos em completos nazis?
Desde quando é que o dito amor aos animais passou a servir de plataforma para a desumanização do Outro?
É revoltante ler um texto cheio de lamentações desta natureza sobre uma cadela posta fora de um comboio (e que, aparentemente, nem maltratada foi, ao contrário do dono) e encontrar este recorte de vil desprezo, mesquinha xenofobia e extrema desumanidade em que uma pessoa é caracterizada como sendo pior que «um animal selvagem». Com efeito, sempre que foi preciso desumanizar o Outro - aqueles que têm uma pele de cor diferente da nossa, aqueles que professam uma religião diferente da nossa ou que não professam religião nenhuma, aqueles que têm uma orientação sexual diferente da nossa, aqueles que possuem deficiências mentais e físicas, aqueles que, em suma, são sempre diferentes de uma maioria -, fez-se isso retirando-lhe o estatuto de ser humano para o categorizar como sendo um animal, um rafeiro, um parasita, uma praga. A linguagem da intolerância hegemónica é conhecida e a estratégia é sempre a mesma: para que seja aceitável a guetização e o extermínio dos seres humanos que se quer esconder ou eliminar é sempre preciso ensinar a população a observá-los como se eles fossem sub-humanos, como se eles fossem animais. A história está recheada de exemplos de como as sociedades que sobrevalorizaram o amor pelos animais em relação ao amor pelas pessoas, antropomorfizando os animais e desumanizando as pessoas, foram as sociedades nas quais se desenvolveram os piores crimes imagináveis contra minorias étnicas e religiosas. Uma vez desumanizado, o ser humano pode ser abatido como «um animal selvagem», para usar as palavras de Marlene Melo. Não é, pois, original que esta utilizadora do Facebook tenha escolhido essas palavras: a desumanização de uma cidadã que 1) é estrangeira e 2) é pobre só pode ser realizada rebaixando-a para o estatuto de «animal selvagem». Até aqui se compreende como entre os próprios animais se faz uma perigosa distinção: separam-se os animais em duas classes, os domésticos, como a cadela «super meiga e muito novinha», e os «selvagens», que cheiram mal e são indesejáveis.
Na alemanha nazi, o amor aos animais foi sobrevalorizado em relação ao amor pelas pessoas com os resultados trágicos que se conhece. Göring acabou com a investigação científica com base nas experiências em animais, mas a ciência nazi não retrocedeu, porque as vítimas humanas trincafiadas nos campos de concentração e de extermínio consistiram num número mais do que suficiente de cobaias para as experiências mais dolorosas, aviltantes e desumanas. Ao mesmo tempo que os nazis proibiam até que as lagostas fossem cozidas sem serem anestesiadas primeiro, os comandantes da SS davam cachorros aos noviços para estes cuidarem deles durante os anos da recruta: logo que se formavam, eram obrigados a matar os cães, já crescidos - era assim que os gangsters da SS turvavam o julgamento moral dos seus jovens torcionários para que, daí em diante, matassem seres humanos com total à-vontade. Aqueles que se chocam hoje ao verem uma cadela ser posta fora do comboio, mas que se dispõem com rapidez a chamar de «animal selvagem» uma cidadã que viaja com eles, porque acham que ela «cheira pior que um animal selvagem ou abandonado ou quase morto» e que até nem queriam deixar entrar no comboio «por uma questão de sáude pública», apesar dela, ainda por cima, ter bilhete, comportam-se exactamente como os nazis do século passado. A vossa intolerância, xenofobia e estupidez é uma questão de saúde mental.
Confunde-se o amor pelos animais com o amor doentio por cães e gatos, porque os cães e os gatos são animais giros: foram criados artificialmente, durante milénios de cruzamentos, para conservarem na maturidade sexual as características da infância. O cão adulto é um lobo bebé: os lobos adultos não brincam, não ladram (ladrar é linguagem de lobo bebé) e não manifestam nenhum comportamento demonstrado pelos cães, porque os lobos são animais adultos e os cães, mesmo os adultos, foram apurados para serem bebés - assim como todas as espécies de animais domésticos que partilham o nosso espaço, desde os domésticos até aos criados para consumo. São espécies transformadas pela neotenia: o estado de conservar as caraterísticas físicas e comportamentais da infância após a maturação sexual. É por essa razão que achamos esses animais giros, porque vão ao encontro daquilo que, em bebés humanos, nos desperta sentimentos de amor e desejos de protecção. Os criadores de personagens de banda desenhada e de animação sabem-no muito bem e todas as personagens de grande sucesso foram desenhadas de acordo com esses cânones e proporções: estatura pequena, com formas arredondadas; cabeças grandes com olhos também grandes, muito próximos um do outro, e bocas e narizes pequenos; mãos e pés grandes que dão um ar desajeitado e patusco. Estas são as caraterísticas dos nossos animais domésticos e é por esta razão que existem indivíduos que os adoram de modo doentio: estão, literalmente, "pedrados" com uma sobredosagem de fofice. Mas essa sobredosagem termina onde a neotenia acaba, porque já se viu que existem os «animais selvagens» que não são criaturas «super meigas e muito novinhas». Estes animais, ao fim e ao cabo, são como a cidadã romena que se quer fora do comboio: são os Outros.
Neste momento, poderão discordar de mim, mas lembrem-se bem do que vos vou dizer: desconfiem e tenham muito cuidado com quem se mostra insensível e intolerante diante da miséria e do sofrimento dos seres humanos, mas mostre um amor doentio e cego por (algumas) espécies animais.
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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
Contra a estupidez, a inteligência
E é por isto que os eBooks nunca poderão substituir os livros a sério.
(Actualização: entretanto, imediatamente depois de publicar esta imagem, vi que saiu esta notícia: «O
ministro das Finanças, Vítor Gaspar, propôs "alterações profundas do
sistema político" no período pós troika.»
Sem adivinhar, escolhi a imagem certa no momento certo: nunca precisámos tanto de
mão-firme e mente aguçada como agora. Se não formos mais activos, mais
bem-informados e mais inteligentes, seremos escravos para sempre. A notícia encontra-se aqui: http://www.dn.pt/politica/interior.aspx?content_id=3067487.)
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sábado, 16 de fevereiro de 2013
The world keeps turning
Fez ontem 449 anos que, na cidade italiana de Pisa, nasceu o célebre cientista Galileu Galilei, campeão da astronomia e da matemática, que, no século XVII, sofreu na pele os horrores inquisitoriais, liderados pelo Papa Urbano VIII, por ter defendido no livro Dialogo Sopra I Due Massimi Sistemi del Mondo (1632) a autenticidade da teoria heliocêntrica, segundo a qual é a Terra que orbita o Sol e não o Sol que orbita a Terra (como assegura a teoria geocêntrica). Condenado, em 1633, à prisão perpétua pelo tribunal do Santo Ofício (sentença comutada, no dia seguinte, para prisão domiciliária), Galileu terá dito, entredentes, depois de renegar a própria teoria, «eppur si muove!», referindo-se à órbita que a Terra descreveria, de facto, em torno do Sol.
Na verdade, essa declaração apareceu pela primeira vez, em 1757, no livro Biblioteca Italiana do escritor e crítico italiano Giuseppe Barretti; quatro anos depois foi popularizada - e legitimada - pela inclusão no livro Querelles Littéraires do clérigo e historiador francês Augustin Simon Irailh. Mesmo assim, o reputado historiador canadiano Stilmann Drake escreveu em Galileo at Work: His Scientific Biography, publicado em 1978, que existe um quadro, datado de 1643 ou 1645, provavelmente pintado pelo artista espanhol Bartolomé Esteban Murillo (ou por um pintor influenciado por Murillo), que mostra Galileu acorrentado numa masmorra inquisitorial e apontando com um dedo para a frase «eppur si muove!» escrita na parede. O quadro é, de certeza, autêntico, embora a data de realização - mais ano, menos ano - ainda não tenha sido apurada com rigor; de qualquer maneira, demonstra-nos que uma década após o julgamento de Galileu (no mínimo) já circulava a história da sussurrada sedição.
Então, em que ficamos?
Galileu disse ou não, em voz baixa e batendo o pé, o famoso despique à autoridade inquisitorial?
Não existe nenhuma prova de que o tenha proferido, embora a atitude conforme com aquilo que é sabido sobre a sua personalidade.
Independentemente disso, prometo desmistificar o julgamento de Galileu numa próxima oportunidade. Fiquem por aí.
Na verdade, essa declaração apareceu pela primeira vez, em 1757, no livro Biblioteca Italiana do escritor e crítico italiano Giuseppe Barretti; quatro anos depois foi popularizada - e legitimada - pela inclusão no livro Querelles Littéraires do clérigo e historiador francês Augustin Simon Irailh. Mesmo assim, o reputado historiador canadiano Stilmann Drake escreveu em Galileo at Work: His Scientific Biography, publicado em 1978, que existe um quadro, datado de 1643 ou 1645, provavelmente pintado pelo artista espanhol Bartolomé Esteban Murillo (ou por um pintor influenciado por Murillo), que mostra Galileu acorrentado numa masmorra inquisitorial e apontando com um dedo para a frase «eppur si muove!» escrita na parede. O quadro é, de certeza, autêntico, embora a data de realização - mais ano, menos ano - ainda não tenha sido apurada com rigor; de qualquer maneira, demonstra-nos que uma década após o julgamento de Galileu (no mínimo) já circulava a história da sussurrada sedição.
Então, em que ficamos?
Galileu disse ou não, em voz baixa e batendo o pé, o famoso despique à autoridade inquisitorial?
Não existe nenhuma prova de que o tenha proferido, embora a atitude conforme com aquilo que é sabido sobre a sua personalidade.
Independentemente disso, prometo desmistificar o julgamento de Galileu numa próxima oportunidade. Fiquem por aí.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
O corno paciente
No Dia dos Namorados, e não só, há quem goste
de namorar com as namoradas e os namorados dos outros. Em linguagem
popular, chama-se a isso o "encornanço": ou seja, o acto de "pôr
cornos".
Hei de falar com mais detalhe sobre esta simbologia fascinante - como é que os cornos se tornaram o símbolo da vítima de adultério -, mas, para já, e porque se relaciona com mais facilidade com este dia, prefiro chamar a atenção para o facto interessantíssimo de que ser-se "corno" e não fazer nada em relação a isso já foi considerado crime. Mais uma vez, a linguagem popular não perdoa: o indivíduo nesta condição é o chamado "corno manso" - em suma, aquele que sabe que é "encornado", mas que, por variadas razões, não se importa de sê-lo. Há uns séculos, chamavam-lhe o "corno paciente" - daí o conhecido pregão "paciência de corno" que ainda hoje pode ser ouvido das bocas dos mais velhos.
Em resumo, quando o indivíduo não se importava de ser "corno" (quando era "corno paciente"), a própria sociedade encarregava-se de fazer justiça por ele; neste caso, "o corno paciente" bem a dispensava, porque ela consistia em pôr-lhe uns cornos folclóricos, feitos com duas grandes galhadas, amarrados com badalos. Neste feitio, era obrigado a percorrer as ruas da cidade ou da aldeia, ao mesmo tempo que era fustigado por um oficial de justiça. Quanto à adúltera, o castigo era o seguinte: sentavam-na em outro burro, no qual seguia junto do marido, despida da cintura para cima e coberta de estrume para atrair as moscas.
O delito de "corno paciente" é um exemplo da justiça de outrora, que, ao mesmo tempo que punia os prevaricadores e restabelecia a ordem pública, tinha o condão de servir de entretenimento e cola social. Para ilustrar esta observação escolhi um desenho do artista flamengo Joris Hoefnagel, que serve de frontispício à entrada sobre Sevilha no atlas quinhentista sobre as cidades do mundo Civitates Orbis Terrarum, de Frans Hogenberg e Georg Braun (Colónia, 1598). Pode ver-se o "corno paciente" montado no jumento, a ser chibatado, assim como, à sua frente, a esposa coberta de excrementos e envolta numa nuvem de moscas.
Hei de falar com mais detalhe sobre esta simbologia fascinante - como é que os cornos se tornaram o símbolo da vítima de adultério -, mas, para já, e porque se relaciona com mais facilidade com este dia, prefiro chamar a atenção para o facto interessantíssimo de que ser-se "corno" e não fazer nada em relação a isso já foi considerado crime. Mais uma vez, a linguagem popular não perdoa: o indivíduo nesta condição é o chamado "corno manso" - em suma, aquele que sabe que é "encornado", mas que, por variadas razões, não se importa de sê-lo. Há uns séculos, chamavam-lhe o "corno paciente" - daí o conhecido pregão "paciência de corno" que ainda hoje pode ser ouvido das bocas dos mais velhos.
Em resumo, quando o indivíduo não se importava de ser "corno" (quando era "corno paciente"), a própria sociedade encarregava-se de fazer justiça por ele; neste caso, "o corno paciente" bem a dispensava, porque ela consistia em pôr-lhe uns cornos folclóricos, feitos com duas grandes galhadas, amarrados com badalos. Neste feitio, era obrigado a percorrer as ruas da cidade ou da aldeia, ao mesmo tempo que era fustigado por um oficial de justiça. Quanto à adúltera, o castigo era o seguinte: sentavam-na em outro burro, no qual seguia junto do marido, despida da cintura para cima e coberta de estrume para atrair as moscas.
O delito de "corno paciente" é um exemplo da justiça de outrora, que, ao mesmo tempo que punia os prevaricadores e restabelecia a ordem pública, tinha o condão de servir de entretenimento e cola social. Para ilustrar esta observação escolhi um desenho do artista flamengo Joris Hoefnagel, que serve de frontispício à entrada sobre Sevilha no atlas quinhentista sobre as cidades do mundo Civitates Orbis Terrarum, de Frans Hogenberg e Georg Braun (Colónia, 1598). Pode ver-se o "corno paciente" montado no jumento, a ser chibatado, assim como, à sua frente, a esposa coberta de excrementos e envolta numa nuvem de moscas.
A neve e o fogo
Hoje, Dia dos Namorados, lembrei-me de uma das
mais belas histórias de amor que conheço - talvez seja, de facto, a
mais bela. O conto O Homem de Neve, escrito por Hans Christian
Andersen, em 1861. A melancolia profunda dos textos mais tristes de
Andersen emociona-me muitíssimo e coloca-me numa encruzilhada de
saudade, entre a infância e a idade adulta. Em 1866, Andersen visitou
Portugal e em Julho ficou hospedado na Quinta dos Bonecos (tão adequado
que isto é), em Setúbal, propriedade da
família O'Neill; no diário que escreveu, queixa-se do calor intenso, mas
ao mesmo tempo descreve, com enlevo amoroso, a paisagem portuguesa que
tanto o encanta. Tal como o Homem de Neve da história belíssima que
escreveu cinco anos antes, sente-se, em simultâneo, atraído e magoado
por essa estranha energia que é o calor. Visita, ainda em Setúbal, o
Convento de Nossa Senhora dos Anjos de Brancanes, construído num lugar
recheado de história desde os tempos pré-históricos, e que, entre 1998 e
2007, foi vergonhosamente - escandalosamente - transformado numa
prisão. Eu acho que isto dá muito que pensar, em principal neste dia,
dedicado ao amor, sentimento libertador por natureza.
Sobre os Vikings
Em Março, o Canal História vai estrear uma
série intitulada Vikings, que, aparentemente, é um misto de história e
ficção. O criador de Vikings é Michael Hirst, autor das séries The
Tudors e Camelot - dificilmente exemplos de rigor histórico. A série é
descrita desta forma: «Vikings will chronicle the adventures of
Ragnar Lothbrock, an actual Norse hero from the Viking Age, as he rises
to head of the Viking tribes». Mas, para começar, Ragnar Lothbrock, que
se dizia descendente de Odin,
provavelmente nunca existiu: é uma personagem fictícia, que figura no
poema Ragnarsdrápa (final do século IX ou início do século X),
inventada a partir de outras personagens que, provavelmente, também não
existiram. Os relatos mitológicos dos deuses e heróis nórdicos que
chegaram até nós foram quase todos escritos entre os séculos X e XIII
(por cronistas islandeses), num período em que os chamados vikings já se
tinham convertido ao cristianismo, e encontram-se impregnados de
alusões cristãs, como no relato da morte de Odin, pendurado, perfurado
por uma lança e ressuscitado poucos dias depois. A influência dos
Evangelhos e dos relatos cristãos apócrifos na escrita destes materiais
é, pois, um assunto que merece um estudo profundo.
A imagem popularizada por Hollywood (e, adivinha-se, por esta série) não corresponde à verdade histórica e é construída, em grande parte, pelas concepções imaginadas a partir de finais do século XVIII, durante o revivalismo viking que se operou durante o Romantismo (houve vários revivalismos durante o Romantismo: o grego, o romano, o egípcio, etc.). A própria palavra "viking" é altamente ambígua, porque, segundo as fontes mais antigas, apenas significa "viagem". Outra palavra da mesma família, "vikingr", surge em contextos nos quais os indivíduos citados se dedicam à pesca ou à pirataria; portanto, relacionada com o mar. Em suma: a palavra "viking" não é nenhum etnónimo. Existiram famílias e clãs escandinavos (dinamarqueses, suecos, noruegueses) que se dedicaram à pilhagem e à exploração marítima, mas nunca existiu nenhum povo "viking".
E estes escandinavos a que chamamos de vikings foram cristãos: o período das explorações "vikings" começou em Junho de 793, com a pilhagem do mosteiro de Lindisfarne, na costa norte inglesa, mas poucos anos depois, durante a primeira metade do século IX, estes indivíduos foram-se convertendo ao cristianismo. A rapidez com que essa conversão aconteceu indica a forte probabilidade de alguns deles já serem cristãos, para começar. Os escandinavos foram, acima de tudo, politeístas: adoptar mais um deus, cristão ou não, não era nenhum sacrifício - e Cristo, como é sabido, partilha muitas características do arquétipo de um deus solar, o que, sem dúvida, ajudou a uma adopção mais rápida. No século X, a Noruega, a Suécia e a Dinamarca tornaram-se, oficialmente, reinos cristãos. Leif Eriksson, o famoso viking, filho de Erik, o Vermelho, cristianizou a Gronelândia. Não obstante, existiu um povo nórdico - povo, de facto - que recusou o cristianismo até ao século XIX, altura em que foi pressionado pela Noruega a abandonar os seus costumes ancestrais: os Sami (Lapões) - não os vikings.
Mas, enfim, a imagem romântica criada pelos produtos de entretenimento irá sempre ser mais apelativa que a verdade histórica: agricultores escandinavos, de vários clãs e etnias, tornados comerciantes e sobretudo piratas, tanto pela ganância como pela infertilidade dos solos nórdicos. Não foram nenhum povo, nem de bárbaros, nem de nobres "pagãos", mas indivíduos obrigados pelo desespero à diáspora. Nunca usaram capacetes com cornos (quem usou capacetes com cornos foram os gauleses), mas deixaram-nos uma lição que se calhar nesta altura que atravessamos é mais importante ainda: quando se tem fome, a gente adapta-se a tudo - até se adapta a deixar a nossa terra, porque ela não dá pão suficiente.
A imagem popularizada por Hollywood (e, adivinha-se, por esta série) não corresponde à verdade histórica e é construída, em grande parte, pelas concepções imaginadas a partir de finais do século XVIII, durante o revivalismo viking que se operou durante o Romantismo (houve vários revivalismos durante o Romantismo: o grego, o romano, o egípcio, etc.). A própria palavra "viking" é altamente ambígua, porque, segundo as fontes mais antigas, apenas significa "viagem". Outra palavra da mesma família, "vikingr", surge em contextos nos quais os indivíduos citados se dedicam à pesca ou à pirataria; portanto, relacionada com o mar. Em suma: a palavra "viking" não é nenhum etnónimo. Existiram famílias e clãs escandinavos (dinamarqueses, suecos, noruegueses) que se dedicaram à pilhagem e à exploração marítima, mas nunca existiu nenhum povo "viking".
E estes escandinavos a que chamamos de vikings foram cristãos: o período das explorações "vikings" começou em Junho de 793, com a pilhagem do mosteiro de Lindisfarne, na costa norte inglesa, mas poucos anos depois, durante a primeira metade do século IX, estes indivíduos foram-se convertendo ao cristianismo. A rapidez com que essa conversão aconteceu indica a forte probabilidade de alguns deles já serem cristãos, para começar. Os escandinavos foram, acima de tudo, politeístas: adoptar mais um deus, cristão ou não, não era nenhum sacrifício - e Cristo, como é sabido, partilha muitas características do arquétipo de um deus solar, o que, sem dúvida, ajudou a uma adopção mais rápida. No século X, a Noruega, a Suécia e a Dinamarca tornaram-se, oficialmente, reinos cristãos. Leif Eriksson, o famoso viking, filho de Erik, o Vermelho, cristianizou a Gronelândia. Não obstante, existiu um povo nórdico - povo, de facto - que recusou o cristianismo até ao século XIX, altura em que foi pressionado pela Noruega a abandonar os seus costumes ancestrais: os Sami (Lapões) - não os vikings.
Mas, enfim, a imagem romântica criada pelos produtos de entretenimento irá sempre ser mais apelativa que a verdade histórica: agricultores escandinavos, de vários clãs e etnias, tornados comerciantes e sobretudo piratas, tanto pela ganância como pela infertilidade dos solos nórdicos. Não foram nenhum povo, nem de bárbaros, nem de nobres "pagãos", mas indivíduos obrigados pelo desespero à diáspora. Nunca usaram capacetes com cornos (quem usou capacetes com cornos foram os gauleses), mas deixaram-nos uma lição que se calhar nesta altura que atravessamos é mais importante ainda: quando se tem fome, a gente adapta-se a tudo - até se adapta a deixar a nossa terra, porque ela não dá pão suficiente.
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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013
Uma Festa do Chá Maluca: Entre a Vida e a Arte
No filme Alice in Wonderland (2010), do realizador norte-americano Tim Burton, o cabelo do Chapeleiro Louco, interpretado pelo actor norte-americano Johnny Depp, é cor-de-laranja, uma alusão à crença que os chapeleiros de outrora se envenenavam ao tratarem as peles de animais com nitrato de mercúrio para fazerem chapéus de feltro: um dos efeitos do tóxico seria o de oxidar (tornar cor-de-laranja) as pelagens brancas; além de contribuir para o apodrecimento dos sistemas nervosos dos chapeleiros, provocando-lhes perturbações cerebrais, tremores e discurso entaramelado. É com base nestas referências que se explica a origem da expressão popular inglesa “mad as a hatter”. (“louco como um chapeleiro”) e se contextualiza o comportamento do caprichoso Chapeleiro Louco, criado pelo escritor inglês Lewis Carroll no romance Alice’s Adventures in Wonderland, publicado em 1865: versão extensa de um manuscrito que o autor escrevera e ilustrara no ano anterior para oferecer à pequena Alice Lidell. (O capítulo VII, “A Mad Tea-Party” (“Uma Festa do Chá Maluca”), desse romance não faz parte do manuscrito original e até foi uma adição tardia de Carroll.) Porém, em nenhuma linha nos é descrita a cor do cabelo do Chapeleiro Louco, nem que ele se encontra sob a influência do perigoso elemento químico.
No que concerne aos factos é credível que o costume de chapuçar as peles numa solução de nitrato de mercúrio tenha sido criado por chapeleiros franceses protestantes e por eles mantido em sigilo até 1685, ano em que o rei francês Louis XIV anulou o Édito de Nantes (instituído em 1598 por Henri IV de França para cessar as guerras religiosas, entre católicos e protestantes, que assolaram todo o século XVI), ilegalizando novamente o credo calvinista francês (huguenote): grande parte desses professos partiram para Inglaterra e especula-se que foi a partir daí que os chapeleiros ingleses passaram a empregar a técnica mercurial, substituindo a do vapor de água. Mesmo assim, a suspeita de uma correlação entre os sais hidrargírios e os desarranjos nervosos dos chapeleiros poderá não ser uma explicação segura para a origem da expressão supracitada. Sabe-se que a primeira vez que ela apareceu impressa foi no volume XXV da revista britânica de ficção gótica e de horror Blackwood’s Edinburgh Magazine (satirizada pelo escritor norte-americano Edgar Allan Poe) num texto de 1829, intitulado “Noctes Ambrocianae”; sete anos depois, o autor canadiano Thomas Chandler Haliburton, criador da personagem Samuel Slick, usou-a em The Clockmaker, or The Sayings and Doings of Samuel Slick of Slicksville, certamente difundindo-a junto do público norte-americano. Em 1850, com a publicação integral do romance satírico Pendennis, o popular escritor inglês (nascido em Calcutá) William Makepeace Thackeray democratizou-a, em definitivo, quinze anos antes da publicação de Alice’s Adventures in Wonderland.
Por outro lado, Carroll pediu a Sir John Tenniel, o caricaturista inglês que lhe ilustrou o livro (e a sequela Through the Looking-Glass, and What Alice Found There, editada em 1871), que desenhasse o Chapeleiro Louco à semelhança do estofador e antiquário inglês Theophilus Carter, excêntrica figura cuja alcunha era “Mad Hatter”, em virtude do seu hábito de usar sempre uma cartola e das suas ideias estapafúrdias – entre as quais um sofisticado relógio de alarme capaz de atirar sozinho um indivíduo para fora da cama, apresentado na Exposição Mundial de 1851 (a primeira das várias exposições mundiais), realizada no Crystal Palace, em Londres. Infelizmente, não existem fotografias de Carter. Depois dos dois livros de Alice terem sido publicados, Carroll escreveu numa carta que «o senhor Tenniel é o único artista que desenhou para mim que se recusou resolutamente a usar um modelo»: esta frase relaciona-se com o modelo sugerido a Tenniel por Carroll para a própria Alice, mas o contexto é ambíguo o suficiente para referir-se de igual modo a outras personagens, embora o facto do Chapeleiro Louco se mostrar obcecado com as horas (até se dirige ao Tempo como him e não como it) poderá ser uma ligação a Carter e ao seu relógio “maluco”. Pode dizer-se que arte imitou a vida.
A última vez que Alice vê o Chapeleiro Louco nesse capítulo, ele tenta enfiar o Rato Dorminhoco adormecido dentro de um bule de chá, com a ajuda da Lebre de Março. Em inglês, o nome do Rato Dorminhoco é Dormouse, corruptela do nome francês dormeuse que significa adormecida e que é dado a uma pequena espécie hibernante de roedor campestre europeu chamada arganaz. O francês foi a língua da corte britânica durante séculos e é fácil perceber como dormeuse se transformou em dormouse, por virtude da similitude fonética. Mas existem outras similitudes, históricas, com a representação do Rato Dorminhoco.
De facto, muitas crianças inglesas, contemporâneas da edição do romance de Carroll, tinham ratinhos (algumas teriam certamente arganazes) como animais de estimação e guardavam-nos em bules com palha ou com ervas (daí o Chapeleiro Louco e a Lebre de Março quererem enfiar o Rato Dorminhoco no bule com chá – era a moda da altura). Conjuntamente, o desenho de Tenniel exibe-se como um animal atarracado e gordo, concorrendo para que ainda subsista a ideia de que é uma caricatura de Top: o primeiro vombate de estimação do pintor inglês pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti.
O sapudo vombate é um marsupial australiano, de metabolismo lento e comportamento pachorrento – Rossetti costumava trazer Top para a mesa de jantar quando recebia visitas e todos se encantavam a ver o animal adormecer, sem dar importância nenhuma ao que se passava em volta. É uma história atraente, mas o bicho desenhado por Tenniel tem uma longa cauda, característica dos arganazes, e Rossetti só adquiriu Top em Setembro de 1869: quatro anos depois de Alice’s Adventures in Wonderland ter sido publicado. Embora Carroll fosse visita de sua casa (além de ter sido seu fotógrafo, é, ainda, evidente que a Alice que imaginou e desenhou no seu manuscrito original deve muitíssimo ao cânone de beleza feminina inaugurado pelos pintores pré-rafaelitas; incluindo a típica expressão triste, com a cabeça ligeiramente inclinada), a ideia de que o Rato Dorminhoco é o vombate não tem fundamento, mas o relato das sonecas que ele fazia à mesa é genuíno, por isso, neste caso, pode dizer-se que a vida imitou definitivamente a arte.
De modo infeliz, Top morreu de repente, dois meses depois de ter sido comprado ao comerciante alemão de animais Charles Jamrach (que aparece como personagem secundária no romance Dracula de Bram Stoker). Consta que Top comeu o conteúdo inteiro de uma caixa de charutos, que o terá envenenado, mas na verdade morreu de sarna. Rossetti adorava-o e definiu-o como sendo «uma maluquice» de criatura.
Convidado adequado, portanto, a «uma festa do chá maluca».
(Imagens: A festa do chá maluca, desenhada por Sir John Tenniel, publicada em Alice's Adventures in Wonderland; manuscrito e ilustração originais de Lewis Carroll quando a história ainda se intitulava Alice's Adventures Undergroud; auto-retrato de Dante Gabriel Rossetti, com poema, chorando a morte de Top; Alice desenhada por Carroll, no seu manuscrito original, de acordo com o cânone de beleza feminina pré-rafaelita.
Versão aumentada da crónica publicada no número 13 da revista BANG!)
Versão aumentada da crónica publicada no número 13 da revista BANG!)
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013
Sobre o Dia dos Namorados
Aproxima-se o dia de São Valentim, Dia dos Namorados, mas quantos namorados saberão que a data de 14 de Fevereiro é sua graças à crendice popular de que era nela que os pássaros escolhiam os companheiros de acasalamento?
Foi com base nessa superstição que o pioneiro poeta inglês Geoffrey Chaucer escreveu a provável primeira menção ao providencialismo valentino como sendo uma vantagem para angariar amantes: «For this was Seynt Valentyne's Day. / When every foul cometh ther to choose his mate» (The Parlement of Foules. 1381). Este poema conta como as aves se reuniam junto do templo de Vénus para se escolherem umas às outras, mas como é que estes volúveis amores ornitológicos se entreteceram com a severa hagiografia cristã?
A crença de que as aves tinham um dia próprio para encontrarem um par faz todo o sentido, naquilo que se sabe sobre as crenças populares medievais, nas quais o mundo natural se regia pela Lei de Deus e se os homens possuíam dias especiais, também os animais, parte integrante da criação, os tinham. Contudo, no relato da vida de São Valentim que pode ler-se no martirológio Legenda Aurea não se encontra nenhuma referência a qualquer papel de casamenteiro que ele pudesse ter desempenhado, tanto de homens como de pássaros. Na verdade, de qual São Valentim se está a falar? Existem vários. No mínimo, dois Valentins são fortes candidatos à celebração instituída para 14 de Fevereiro: 1) um físico romano e 2) um bispo da cidade de Terni; um foi martirizado em 270, outro em 197 e ambos foram enterrados na célebre Via Flamínia, embora não no mesmo sítio. Proliferam inúmeras especulações e anedotas sobre como São Valentim se poderá ter tornado o padroeiro dos namorados, mas nenhuma pode ser levada a sério.
Também se especula que o dia 14 de Fevereiro se tornou o Dia dos Namorados aquando da conversão que a Igreja Cristã fez no século V (494), transformando o festival romano Lupercália, celebrado com rituais de fertilidade, no dia de São Valentim. Mas isso também é um erro, porque o Papa Gelásio I converteu o festival Lupercália na Festa da Purificação de Maria. A tónica colocada na purificação justifica-se no facto de que Fevereiro tem origem no nome latino Februarius que significa mês das purificações, o último mês do antigo calendário romano. As festividades lupercalianas relacionavam-se mais com a prática dos sacrifícios purificadores do que com a luxúria, o que torna forçada a teoria de que este festival é o embrião do Dia dos Namorados. Na verdade, bem vistas as coisas, a primeira vez que o dia de São Valentim aparece combinado com a prática do namoro é no poema de Chaucer. Por conseguinte, foi ele que inventou a conexão, fundindo-a com a tal superstição popular sobre as alianças dos pássaros, para a colorir; ou ela já circulava, de forma oral, pois não existem registos escritos, no círculo restrito da cultura erudita coeva, sendo, nesse caso, provavelmente um produto das tardias tradições cavaleirescas que usaram o "amor" como alegoria para outros conceitos.
Seja como for, com a benção de Valentim ou sem ela, os pássaros não passam de répteis monogâmicos: poesia sauropsida! Chaucer iria gostar.
(Imagem: The Parliament of Birds, Carl Wilhelm de Hamilton (início do século XVIII).
(Imagem: The Parliament of Birds, Carl Wilhelm de Hamilton (início do século XVIII).
domingo, 10 de fevereiro de 2013
Sobre o Carnaval
Pouquíssimas dúvidas restarão sobre o facto de que a origem da palavra Carnaval se encontra na expressão latina Carne Vale, que significa, literalmente, despedida da carne ou, de modo mais abreviado, adeus à carne. Mas qual carne? Não se trata tanto da carne que se come, como é evidente, embora esta não esteja excluída do enunciado, mas das tentações carnais, dos pecados da luxúria, do sensualismo. Com efeito, a festa do Carnaval contemporâneo está relacionada directamente com o Entrudo, nome proveniente da palavra latina introitus, que possui o significado de entrada; neste caso, a entrada na Quaresma (em latim, quadragesima): período de quarenta dias de preparação para a celebração da Páscoa, que se estende desde a chamada quarta-feira de Cinzas até ao sábado de Aleluia, véspera do domingo pascal, dia da ressurreição de Cristo. Durante estes quarenta dias (o número 40 sempre foi especialmente significante para as religiões judaica e cristã), os cristãos eram obrigados pela Igreja a absterem-se de relações sexuais e a obedecerem a um conjunto de preceitos rígidos, de orações e de jejuns mandatórios. Neste feitio, o Entrudo - os três dias de abastança e festa que assinalavam a entrada na Quaresma - era observado como sendo um intervalo de tempo em que quase tudo era permitido, de molde a domar os instintos mais insaciáveis para as privações que se iniciariam no dia seguinte à chamada terça-feira Gorda (último dia do Entrudo), na quarta-feira de Cinzas.
Neste sentido, o Carnaval é, em essência, uma festividade cristã (católica), embora existam algumas teorias sobre as suas origens "pagãs"; em principal, a que advoga uma procedência carnavalesca nas Saturnais romanas, festividades realizadas em honra de Saturno, celebradas entre 17 e 23 de Dezembro. O único elo de ligação que poderia existir entre as Saturnais e o Carnaval é o facto de que as primeiras eram conhecidas por serem uma festa em que os escravos e os amos trocavam entre si as vestes e os papéis sociais; ou seja, os escravos comportavam-se como amos e os amos fingiam-se de escravos. Este "mundo às avessas" era, sobretudo, institucional e simbólico: nenhuma hierarquia era desrespeitada e toda essa rotina era cumprida com artificialidade, no sentido em que não ocorriam rebeldias, nem excessos dignos desses nomes. À luz disso, tenho reservas em aceitar esta teoria, porque a simples troca de roupas entre amos e escravos não constitui, sozinha, um indício de folia e desregramento, que é a característica principal do Carnaval; e, sobretudo, porque as Saturnais também era conhecidas pelas generosas ofertas de presentes e, que eu saiba, nunca se ofereceu, nem oferece, presentes no Carnaval. Será, no meu entender, precipitado afirmar-se que o Carnaval perdeu o significado original, as raízes "pagãs", etc., com o advento do cristianismo, porque o Carnaval é, para todos os efeitos, uma festividade cristã. A tentação de procurar origens "pagãs" para quase todas as festas e costumes populares é, por vezes, injustificada - e até forçada.
Escrevi "pagãs" entre aspas, porque os romanos nunca chamaram pagã à sua religião, nem nunca foram pagãos num sentido religioso: o étimo de pagão é a palavra latina paganus que significa rústico e deriva de pagus, que significa distrito rural; também foi um nome, mais ou menos, pejorativo pelo qual se designavam os indivíduos que não tinham cumprido serviço militar e este é o significado que nos interessa. É que os primeiros cristãos - romanos convertidos ao cristianismo -, perseguidos pelos imperadores (como Nero, Diocleciano e, mais tarde, Juliano, o Apóstata), chavamam-se a si próprios de "soldados de Cristo" e, nesse sentido, todos os outros romanos eram os "pagãos" (não-convertidos, porque eram "civis" para Cristo). Em suma, nunca existiu uma religião "pagã" ou um culto "pagão": existiram cultos e religiões que, a posteriori, assim foram chamados para efeito de diferenciação. É uma designação que não tem relação autêntica com a religião romana e outros cultos pré-cristãos.
Mas o Carnaval é tanto uma festividade cristã que, em 1517, o Papa Leão X, em vez de, por exemplo, proibir os excessos carnavalescos, concedeu uma indulgência plenária que tinha, entre outros propósitos, o objectivo de exceptuar os indivíduos dos jejuns e das abstinências quaresmais: ou seja, prolongar - para quem pudesse pagá-los, é claro - esses regabofes. Foi esta indulgência plenária que, vendida na Alemanha pelo frade dominicado Johann Tetzel, deu azo à escrita das célebres noventa e cinco teses do frade agostinho Martinho Lutero, nas quais este não só atacou as bases teológicas da venda de indulgências, como até questionou o próprio poder papal. A partir deste episódio, Lutero rejeitou liminarmente o primado católico, romano, e a infalibilidade das definições dos concílios; em Dezembro de 1520, para adicionar insulto à injúria, incinerou publicamente a bula papal Exsurge Domine que o ameaçava com a excomunhão e no início do ano seguinte cortou relações, em definitivo, com a Igreja Católica ao ser mesmo excomungado com a bula Decet Romanum Pontificem. Nesta óptica, não deixa de ser interessante que tenha sido o escândalo provocado pela venda das remissões dos pecados carnavalescos, cometidos durante o período quaresmal, a estar nas origens do fenómeno do Protestantismo e estabelecimento das variadas comunidades eclesiásticas que sob ele medraram e que, de maneira geral, odeiam o Carnaval.
O genuíno Carnaval português, que sempre foi grotesco, mal-comportado, "popularucho", quase que desapareceu, tendo sido substituído pelos arremedos do Carnaval brasileiro que se realizam anualmente, um pouco por todo o lado. Contudo, o dissolvimento já vem de longe, desde finais do século XIX; com o advento da República, o Carnaval "domesticou-se", tornando-se uma celebração pública mais ordeira, com uma tónica maior na espectacularidade dos desfiles de fantasias e de carros alegóricos, do que na quebra das regras e no confronto. Mesmo assim, o último estertor de um Carnaval genuinamente lisboeta não finou há tão pouco tempo quanto isso: estou a falar da personagem chamada Xexé.
O Xexé foi uma visão comum, e "temida", nas ruas de Lisboa
durante os dias de Carnaval. O período áureo do Xexé terminou em meados
da década de trinta do século passado, quando esta personificação do
Antigo Regime perdeu, em definitivo, referentes com a vida de todos os
dias.
Vestido de casaca de seda, bicórnio e cabeleira, como se fosse um nobre
setecentista, munido com um bastão, um facalhão e um par de cornos, o
Xexé é uma caricatura fidalga, projectada pelos populares, que veio a
ser entendida no século XIX como sendo uma sátira aos partidários
miguelistas. Os chavelhos, elementos decisivos na composição da sua
figura, remetem para o velho hábito olisiponense de pendurar-se cornos
nas portas das casas dos indivíduos a quem se queria chamar de
"cornudos": verdadeira febre que incendiou a imaginação dos lisboetas da
primeira metade do século XVIII e que D. José tentou finar com
uma lei datada de 15 de Março de 1751. Desse modo, o Xexé será, sem
dúvida, uma síntese desse humor popular, ordinário, com o estilo
mariálvico de quem pertence ao escol, mas prefere imiscuir-se com a
ralé. Por ser uma personagem retrógrada, pertencente a uma memória que o
grande terramoto de 1755 não debilitou totalmente, o Xexé costumava ser
representado como sendo um velho lascivo, afectado por tiques de
embriaguez, que importunava com veemência aqueles que com ele se
cruzavam na rua - e daí o nome "xexé" que se dá, tantas vezes, aos
velhotes já acometidos de senilidade. No início do século XX, com o
advento da primeira república, as lúbricas brincadeiras dos xexés e das
chamadas "caqueiradas" (chuvas de águas sujas, dejectos e quinquilharias
que, das janelas, se jogavam sem piedade para cima dos transeuntes)
perderam popularidade para um Carnaval cada vez mais cosmopolita,
pensado como grande espectáculo colectivo, e cada vez menos um intervalo
de ruptura. Já Rafael Bordalo Pinheiro, em 1887, se regozijava com o facto do "novo" Carnaval estar a substituir o "antigo" e, com ele, a desmanchar da memória colectiva a presença incoveniente e insalubre do Xexé (ver o seu artigo caricatural sobre a "Batalha das Flores").
O nome Xexé, cuja grafia deixa no ar uma suspeição de proveniência galega,
poderá ter uma origem onomatopaica, do mesmo modo que o nome gagá, que retém um sentido parecido. Gagá é uma onomatopeia que deriva da palavra francesa gâteur: pejorativo calão hospitalar, usado pelas enfermeiras e pelos médicos, que significa, literalmente, velhote que mija na cama e que veio, seguidamente, a veicular a ideia de senilidade. É, pois, possível que xexé possa derivar de xixi,
relacionando-se assim com a ideia do velhote senil que já não tem
capacidade para controlar-se, inclusive controlar o seu próprio corpo, e
a quem tudo (ou quase tudo) é permitido? É uma contribuição que deixo
para a resolução deste enigma.
Seja como for, o badalhoco, bafiento e impertinente Xexé foi, provavelmente, o último dos anormais "alegóricos" de Lisboa: espécie de Careto urbano de um Carnaval popular, tipicamente lisboeta, que foi substituído pelas manifestações assépticas das marchas bairristas (criadas em 1932) e das versões turísticas das celebrações dos santos populares.
Seja como for, o badalhoco, bafiento e impertinente Xexé foi, provavelmente, o último dos anormais "alegóricos" de Lisboa: espécie de Careto urbano de um Carnaval popular, tipicamente lisboeta, que foi substituído pelas manifestações assépticas das marchas bairristas (criadas em 1932) e das versões turísticas das celebrações dos santos populares.
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sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
Dez Coisas Que Desconhecem Sobre Aleister Crowley e Fernando Pessoa
O passatempo «Dez Coisas Que Desconhecem Sobre...» que lancei aqui há uns dias foi um sucesso: obrigado a todos pelas vossas sugestões e propostas, todas muitíssimo interessantes, que enviaram por email e por comentários e mensagens de Facebook. A vencedora foi a leitora Helena Teresa que, por Facebook, sugeriu que eu falasse sobre o encontro de Aleister Crowley com Fernando Pessoa. Como sabem, já escrevi sobre esse encontro no meu romance A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência, 2007), mas no momento em que li essa sugestão fiquei com uma vontade enorme de revisitar essas figuras que tanto admiro. De maneira que, em vez de falar sobre o encontro de ambos, na Lisboa de 1930, escolhi dez coisas que, provavelmente, vocês desconhecem sobre eles. Espero que gostem e se surpreendam com...
Dez Coisas Que Desconhecem Sobre Aleister Crowley e Fernando Pessoa
1 - Mussolini expulsou Aleister Crowley de Itália, porque suspeitou que ele fosse um agente comunista
Em Março de 1920, mais encantado pela ideia de concretizar um sonho literário do que tornar-se guru de uma seita religiosa, Aleister Crowley, acompanhado pela companheira Leah Hirsig e por um punhado de amigos, ocupou uma propriedade campesina na comuna italiana de Cefalù, na província de Palermo, na Sicília, e estabeleceu nesse lugar a sua "Abadia de Thelema": espécie de retiro mágico-filosófico, inspirado na Abbaye de Thélème descrita por François Rabelais no Capítulo LVII do livro Gargantua (1534). Apesar de Aleister Crowley sempre se ter sentido atraído pela Itália, em virtude de muitos dos seus ídolos literários terem viajado para esse país, a mudança para Cefalù ocorreu numa etapa da sua vida em que ele quis emular o exemplo do pintor Paul Gauguin que, aos quarenta e três anos de idade, abandonou o emprego, a mulher e os filhos para ir pintar para a ilha do Taiti, na Polinésia Francesa. Quando se mudou para Cefalù, Crowley contava com quarenta e quatro anos de idade (só faria quarenta e cinco em Outubro) e identificava-se totalmente com o percurso de Gauguin, que até transformou em Santo no rito da sua Missa Gnóstica. Nessa ilha, à semelhança de Gauguin no Taiti - que baptizara a sua cabana, decorada com telas de cores vivas, com o nome de "Casa dos Prazeres Carnais" -, Crowley baptizou de "Cela das Putas" o aposento principal da "Abadia de Thelema" e decorou-o com pinturas murais de cores garridas. Por três anos, a rotina de Crowley e seu entourage em Cefalù foi paradisíaca, feita de passeios ao ar livre, mergulhos na praia, sessões de leitura e de meditação. Confundindo os "discípulos" que esperavam um guru tradicional, Aleister Crowley pediu-lhes que mantivessem um diário onde apontassem as suas experiências pessoais de forma a que, individualmente, construíssem o seu próprio percurso "mágico", porque a disciplina de Thelema, por ele criada, arrogava que cada indivíduo tinha um papel particular a desempenhar no mundo e que se cada um o realizasse em pleno nunca entraria em rota de colisão com ninguém: é isso que expressa o mote «Do What Thou Wilt» (também retirado da obra de Rabelais), mais a sentença «Every Man and Every Woman is a Star», redigida no inaugural The Book of the Law, que tem sido muitíssimo mal-interpretada como sendo um convite ao desregramento e egoísmo mais elementares e mesquinhos. Um desses discípulos gregários, Raoul Loveday, que também era o secretário de Crowley, adoeceu em Janeiro de 1923, depois de ter bebido água de uma bica durante um passeio que deu com a mulher, Betty May, pelas imediações de um convento que ficava perto da "Abadia de Thelema"; Crowley já avisara que era perigoso beber dessa bica e o resultado foi que Loveday morreu poucos dias depois, em Fevereiro, com uma fulminante infecção nos intestinos e no fígado: como não era católico, não o deixaram ser sepultado no cemitério e foi enterrado num terreno perto da "Abadia". A morte de Loveday é apontada em algumas fontes como tendo sido o motivo pelo qual Crowley foi expulso de Itália, mas a verdade foi bem diferente.
Pouco tempo depois, Aleister Crowley (acompanhado por Leah Hirsig e Norman Mudd, o novo secretário) foi chamado ao gabinete do comissário da polícia, em Palermo, que lhe deu uma semana para abandonar o país: a ordem de expulsão fora enviada pelo Ministério da Administração Interna e tinha como base a argumentação de que o deboche e a perversão sexual na "Abadia de Thelema" tinham de acabar imediatamente - uma desculpa totalmente esfarrapada, porque somente Crowley teve ordem de expulsão, o que deixaria os seus seguidores à vontade para continuarem com as supostas orgias. Os habitantes de Cefalù chegaram a escrever uma petição para que o Signore Crowley não fosse mandado embora, porque ele e os amigos eram boa gente e, sobretudo, bons para a economia local, posto que gastavam muito dinheiro, mas a iniciativa caiu em ouvidos moucos. A verdade sobre a expulsão de Crowley, como pode constatar-se pela leitura da sua pasta no Arquivo Central do Estado, em Roma - um ficheiro cheio de documentação espectacular sobre maçonaria e comunismo -, é que ele era suspeito de manter relações secretas e subversivas com Giovanni Antonio Colunna, político siciliano anti-fascista que Mussolini também expulsou - Colunna era amigo do cônsul inglês em Palermo, que era maçon - e ainda com um activista sérvio chamado Dimitrije Mitrinović, criador do movimento revolucionário New Europe que advogava uma utopia colectivista e anti-clerical.
As "ligações" entre Crowley e o comunismo, com efeito, não eram novas: quando foi editado em livro, The Book of the Law foi interpretado como sendo propaganda comunista, porque instigava à revolução violenta contra o estado das coisas e defendia que da revolução nasceria uma nova era. O próprio Crowley não ajudou ao esclarecimento, afirmando diversas vezes que The Book of the Law era, de facto, «um livro revolucionário» e que, em breve, a velha ordem seria substítuida por uma nova. Num período fortemente politizado, ninguém percebeu a linguagem alegórica de Crowley, que nunca teve a política em mente, e julgaram que se tratava de propaganda comunista disfarçada.
Acabou dessa forma o sonho da "Abadia de Thelema". Proibido de pôr os pés na Itália, Crowley escreveu vários poemas anti-Mussolini; contudo, inversamente às suspeitas deste, ele nunca foi comunista, nem sequer socialista. Mas, apesar disso, também desprezou fortemente os fascistas: antes de ser expulso de Itália já se referia a eles nos seus escritos como os «banditi».
2 - Inversamente à imagem que foi popularizada, Aleister Crowley nunca foi satanista
Aleister Crowley foi um magneto de controvérsia e a imprensa criou-lhe uma imagem exagerada de indivíduo perigoso e perverso. O jornal inglês John Bull, em especial, criou em 1923, na sequência dos "escândalos" perpetrados na "Abadia de Thelema", a mais colorida sequência de epítetos que Crowley teve: «Wizard of Wickedness» (17 de Março), «Wickedest Man in the World» (24 de Março), «King of Depravity» (11 de Abril) e «The Man we'd Like to Hang» (19 Maio). Quando Betty May abandonou a "Abadia", depois da morte do marido, vendeu ao jornal inglês The Sunday Express, por uma boa quantia de dinheiro, um relato difamatório e delirante, em primeira mão, sobre o sacrifício de um gato num ritual satânico na "Abadia", revelando que o marido tinha morrido por beber o sangue desse gato - mais tarde, arrependida, escreveu várias vezes a Crowley, pedindo-lhe desculpas, mas o mal já estava feito. A verdade é que Crowley nunca foi satânico, nem satanista, pese o facto de muitas correntes que professam estas orientações se dizerem inspiradas na sua figura - na realidade, inspiradas pela imagem "cartoonesca" de Crowley, criada pela imprensa.
No sistema mágico e filosófico de Crowley (Thelema) abundam as referências anti-cristãs e anti-clericais, mas Satanás nem sequer está representado de forma simbólica, quanto mais de maneira preponderante. A disciplina de Thelema faz-se de referências que extravasam completamente o espectro das fontes judaico-cristãs e nem de longe forma um corpo antagónico ao cristianismo por via inversa, como o satanismo teísta cifra. É preciso considerar que Aleister Crowley foi um caso paradigmático no ocultismo ocidental do século XX, em virtude da sua educação clássica e percurso de vida muitíssimo viajado: ele recuperou de fontes díspares ocidentais e orientais - a astrologia, a cabala, a magia enoquiana, os mitos egípcios, a alquimia, o I Ching, o budismo, o taoísmo, o yoga - aquilo que mais lhe interessou para criar uma nova filosofia "mágica", mas iniciática, que, pode dizer-se, começa com a escrita de The Book of the Law, mas foi sendo desenvolvida e modificada quase até ao final da sua vida, como se percebe pela publicação póstuma de Magick Without Tears, um livro muito mais luminoso e positivo que The Book of the Law. Às vezes, até se tem a impressão de que Crowley, na tónica que coloca no rigor científico - no método da experimentação empírica e da repetição de resultados -, numa abordagem racional e pragmática às práticas mágicas, se aproxima mais de um ponto de vista ateu ou agnóstico do que de um ponto de vista crente no sobrenatural. De facto, ele escreveu, diversas vezes, que se se fizer determinada acção (mágica) ocorrerá um determinado resultado (mágico), mas que esses fenómenos mágicos são fenómenos naturais: apenas ainda não se encontram explicados pela ciência. Afirma-o, entre outros textos, no Liber DCCCLX:
O facto de Aleister Crowley se ter intitulado "Besta 666" nada tem a ver com adoração pelo Diabo, porque ele bem sabia que o número 666 nada tem a ver com Satanás ou com satanismo, mas que significa, na cabala, "Espírito do Sol". No livro bíblico Apocalipse (nome que apenas significa «revelação do que está oculto»), é referido que «o número da Besta é o número de um homem e esse número é 666», porque, de facto, esse é mesmo o número do Homem, já que este foi criado por Deus no Sexto Dia da Criação, como pode ler-se no Génesis. As interpretações erróneas que colam este número ao satanismo são completamente espúrias e nada têm a ver com o significado original dessa referência. A prova de que Crowley sabia muito bem destas relações autênticas (ao contrário dos seus epígonos contemporâneos) é que numa sessão de um processo judicial que moveu contra Nina Hamnett por difamação, respondeu desta maneira ao procurador que lhe perguntou qual era o significado do nome "Besta 666": «Significa apenas Luz do Sol. Pode chamar-me Pequeno Raio de Sol».
3 - Aleister Crowley foi fortemente anti-clerical, mas a sua ideia do nascimento do Novo Éon está impregnada de Joaquinismo
No início do século XIII, já a reforma de Císter ia a meio-gás, o movimento milenarista medieval reforça-se inesperadamente com o desenvolvimento do Joaquinismo: corrente criada em volta das ideias do frade cisterciense calabrês Joaquim de Fiore, falecido em 1202 (a Calábria é a biqueira da "bota" italiana e nessa altura fazia parte do reino da Sicília). Em essência, o modelo milenarista joaquimita consiste numa visão macro-histórica das origens e destino da humanidade, formada por Três Idades, à semelhança da Santíssima Trindade: a pretérita Idade do Pai (os eventos narrados no Antigo Testamento), a presente Idade do Filho (os eventos narrados no Novo Testamento e a Era da Igreja) e a vindoura Idade do Espírito Santo (um período emergente de profunda contemplação espiritual, perfeição e paz). Joaquim de Fiore criou esta doutrina através do estudo do livro Apocalipse e calculou que a Idade do Espírito Santo despontaria em 1260. Três anos depois dessa data, no Sínodo de Arles, o Papa Alexandre IV condenou o Joaquinismo como sendo uma perigosa heresia. Por que é que uma Idade do Espírito Santo, plena de profunda contemplação, perfeição e paz, consistia numa perigosa heresia? Embora a profunda contemplação, a perfeição e a paz joaquimitas fossem conceitos com os quais, em princípio, a Igreja não teria grandes dificuldades em lidar, Joaquim de Fiore também profetizou que a Idade do Espírito Santo traria o desmantelamento definitivo de todas as estruturas eclesiásticas - e isso é que a Igreja não podia tolerar; daí a condenação tout court do Joaquinismo (na verdade, o Papa Inocêncio III já o tinha condenado, mas apenas em parte, em 1215, no IV Concílio de Latrão). Independentemente disso, o Joaquinismo fez furor entre os franciscanos, que sempre foram, de certa forma, bastante anti-institucionais e, ao longo dos séculos vindouros, o milenarismo joaquimita provou ser um poderoso algoritmo, capaz de adaptar-se e dar sentido a um florilégio estonteante de ideias milenaristas de várias proveniências. Entre elas, o milenarismo crowleyano.
Não reste dúvidas que a narrativa apocalíptica de The Book of the Law (até este título é o mesmo nome que os judeus dão ao Pentateuco) é, em essência, uma nova versão do velho ideal milenarista, apocalíptico - em maior espessura, do milenarismo de recorte joaquimita. Na visão milenarista de Aleister Crowley, desenvolvida em The Book of the Law, pedra basilar do edifício de Thelema, as Três Idades são as seguintes: a Idade da Mãe (uma idade que simboliza uma hipotética madrugada histórica matriarcal, cujo narradora é Nuit, a deusa egípcia da Noite), a Idade do Pai (a idade das religiões patriarcais e monoteístas, cujo narrador é Hadit, noivo de Nuit) e a Idade do Filho (o Novo Éon, o início de uma nova idade cósmica, narrada por Ra-Hoor-Khuit, jovem deus rebelde e vingativo, identificado com Harpocrates: o deus grego do silêncio, baseado nas representações infantes do deus egípcio Hórus, o Sol recém-nascido). Assim, pode também dizer-se que Nuit é identificada com Ísis e Hadit com Osíris. Neste modelo milenarista contemporâneo, sincrético, a energia iconoclasta e indomável da juventude, representada pela Idade do Filho, combate com violência o poder institucional e autoritário, mas decadente, moribundo, da Idade do Pai. É, de facto, uma narrativa "revolucionária" que instiga uma mudança violenta contra o estado das coisas - daí, na altura, ter sido entendida como propaganda radical de esquerda. Para Crowley, o advento do Novo Éon, do qual ele se apresentou como profeta, na mesma linha dos profetas veterotestamentários e de Cristo, seria uma ruptura violenta acompanhada de terramotos e guerras. Quando os efeitos catastróficos se dissipassem, instalar-se-ia, como esperado e costumeiro nas ideias milenaristas, a iluminação (thelemita) num período solar de progressão espiritual.
4 - Aleister Crowley "democratizou" as práticas mágicas
No ínicio do século XX, Aleister Crowley quebrou laços com a Ordem Hermética da Aurora Dourada, na qual tinha sido iniciado poucos anos antes. Ele entrou para essa ordem numa altura em que ela estava a ser dividida internamente por culpa de um conflito pela liderança e essa conjuntura atribulada não foi de maneira nenhuma conveniente à sua integração. À parte disso, Crowley hostilizou-se rapidamente, a um nível pessoal, com alguns membros ilustres; entre os quais o poeta William Butler Yeats e o ocultista Arthur Edward Waite, co-criador do baralho de Tarot de Rider-Waite e tradutor para inglês das obras de Eliphas Levi. Em determinado momento, Crowley pôs-se do lado do líder da ordem, Samuel Liddell MacGregor Mathers, na batalha intestina pelo poder, mas não tardou a hostilizar-se com ele e, a partir daí, a saída da ordem tornou-se inevitável. No término de um período subsequente em que se dedicou ao alpinismo (liderou expedições pioneiras às montanhas Kangchenjunga, nos Himalaias, e Chogo-Ri, entre o Paquistão e a China), a viajar pelo Oriente, pelo Egipto e pelo México (onde também fez alpinismo), Crowley voltou a Londres e, a partir de 1907, com a colaboração dos amigos George Cecil Jones (outro dissidente da Ordem Hermética da Aurora Dourada) e John Frederick Charles Fuller, começou a desenvolver a sua própria fraternidade mágica/iniciática: a thelémica Argenteum Astrum (ou, simplesmente, A∴A∴), cujo lema era «The Method of Science, the Aim of Religion». Em pouco tempo, foi criado o órgão oficial de divulgação da ordem, intitulado The Equinox: uma revista corpulenta, bianual, repleta de artigos e ensaios sobre temas esotéricos. O primeiro número foi editado na Primavera de 1909 (o segundo número foi publicado, como é evidente, no Outono - daí o nome da revista). Certamente por despeito para com McGregor Mathers, The Equinox publicou bastante material referente à Ordem Hermética da Aurora Dourada, tornando público um vasto conjunto de referências que, até essa data, era coutada exclusiva dessa sociedade secreta. Na verdade, depois da Primeira Grande Guerra, numa estratégia de escapismo, a Europa devastada virou-se para o oculto e para o fantástico na literatura, nas artes e na vida privada. Toda a gente quis namorar com o oculto e a revista The Equinox foi, nesse aspecto, fundamental, porque havia popularizado, uns anos antes, todo um conjunto de temas e matérias-primas que, já embebidos no caldo cultural, foram instrumentalizados e transformados: a magia e as iniciações deixaram de ser algo mais ou menos aristocrático para, bem ou mal, serem adoptadas pelas massas. Após a Segunda Grande Guerra, o mesmo fenómeno escapista de procura pelo oculto, pelo fabuloso e pelo espiritual fortaleceu-se ainda mais e cristalizou, em definitivo, um pouco por todo o lado, durante o período psicadélico dos Anos 60 e o advento da chamada New Age. Sem a publicação seminal de The Equinox e as restantes obras de Crowley é provável que nada disto tivesse acontecido ou, então, que tivesse acontecido mais lentamente, de forma irregular.
Em Março de 1920, mais encantado pela ideia de concretizar um sonho literário do que tornar-se guru de uma seita religiosa, Aleister Crowley, acompanhado pela companheira Leah Hirsig e por um punhado de amigos, ocupou uma propriedade campesina na comuna italiana de Cefalù, na província de Palermo, na Sicília, e estabeleceu nesse lugar a sua "Abadia de Thelema": espécie de retiro mágico-filosófico, inspirado na Abbaye de Thélème descrita por François Rabelais no Capítulo LVII do livro Gargantua (1534). Apesar de Aleister Crowley sempre se ter sentido atraído pela Itália, em virtude de muitos dos seus ídolos literários terem viajado para esse país, a mudança para Cefalù ocorreu numa etapa da sua vida em que ele quis emular o exemplo do pintor Paul Gauguin que, aos quarenta e três anos de idade, abandonou o emprego, a mulher e os filhos para ir pintar para a ilha do Taiti, na Polinésia Francesa. Quando se mudou para Cefalù, Crowley contava com quarenta e quatro anos de idade (só faria quarenta e cinco em Outubro) e identificava-se totalmente com o percurso de Gauguin, que até transformou em Santo no rito da sua Missa Gnóstica. Nessa ilha, à semelhança de Gauguin no Taiti - que baptizara a sua cabana, decorada com telas de cores vivas, com o nome de "Casa dos Prazeres Carnais" -, Crowley baptizou de "Cela das Putas" o aposento principal da "Abadia de Thelema" e decorou-o com pinturas murais de cores garridas. Por três anos, a rotina de Crowley e seu entourage em Cefalù foi paradisíaca, feita de passeios ao ar livre, mergulhos na praia, sessões de leitura e de meditação. Confundindo os "discípulos" que esperavam um guru tradicional, Aleister Crowley pediu-lhes que mantivessem um diário onde apontassem as suas experiências pessoais de forma a que, individualmente, construíssem o seu próprio percurso "mágico", porque a disciplina de Thelema, por ele criada, arrogava que cada indivíduo tinha um papel particular a desempenhar no mundo e que se cada um o realizasse em pleno nunca entraria em rota de colisão com ninguém: é isso que expressa o mote «Do What Thou Wilt» (também retirado da obra de Rabelais), mais a sentença «Every Man and Every Woman is a Star», redigida no inaugural The Book of the Law, que tem sido muitíssimo mal-interpretada como sendo um convite ao desregramento e egoísmo mais elementares e mesquinhos. Um desses discípulos gregários, Raoul Loveday, que também era o secretário de Crowley, adoeceu em Janeiro de 1923, depois de ter bebido água de uma bica durante um passeio que deu com a mulher, Betty May, pelas imediações de um convento que ficava perto da "Abadia de Thelema"; Crowley já avisara que era perigoso beber dessa bica e o resultado foi que Loveday morreu poucos dias depois, em Fevereiro, com uma fulminante infecção nos intestinos e no fígado: como não era católico, não o deixaram ser sepultado no cemitério e foi enterrado num terreno perto da "Abadia". A morte de Loveday é apontada em algumas fontes como tendo sido o motivo pelo qual Crowley foi expulso de Itália, mas a verdade foi bem diferente.
Pouco tempo depois, Aleister Crowley (acompanhado por Leah Hirsig e Norman Mudd, o novo secretário) foi chamado ao gabinete do comissário da polícia, em Palermo, que lhe deu uma semana para abandonar o país: a ordem de expulsão fora enviada pelo Ministério da Administração Interna e tinha como base a argumentação de que o deboche e a perversão sexual na "Abadia de Thelema" tinham de acabar imediatamente - uma desculpa totalmente esfarrapada, porque somente Crowley teve ordem de expulsão, o que deixaria os seus seguidores à vontade para continuarem com as supostas orgias. Os habitantes de Cefalù chegaram a escrever uma petição para que o Signore Crowley não fosse mandado embora, porque ele e os amigos eram boa gente e, sobretudo, bons para a economia local, posto que gastavam muito dinheiro, mas a iniciativa caiu em ouvidos moucos. A verdade sobre a expulsão de Crowley, como pode constatar-se pela leitura da sua pasta no Arquivo Central do Estado, em Roma - um ficheiro cheio de documentação espectacular sobre maçonaria e comunismo -, é que ele era suspeito de manter relações secretas e subversivas com Giovanni Antonio Colunna, político siciliano anti-fascista que Mussolini também expulsou - Colunna era amigo do cônsul inglês em Palermo, que era maçon - e ainda com um activista sérvio chamado Dimitrije Mitrinović, criador do movimento revolucionário New Europe que advogava uma utopia colectivista e anti-clerical.
As "ligações" entre Crowley e o comunismo, com efeito, não eram novas: quando foi editado em livro, The Book of the Law foi interpretado como sendo propaganda comunista, porque instigava à revolução violenta contra o estado das coisas e defendia que da revolução nasceria uma nova era. O próprio Crowley não ajudou ao esclarecimento, afirmando diversas vezes que The Book of the Law era, de facto, «um livro revolucionário» e que, em breve, a velha ordem seria substítuida por uma nova. Num período fortemente politizado, ninguém percebeu a linguagem alegórica de Crowley, que nunca teve a política em mente, e julgaram que se tratava de propaganda comunista disfarçada.
Acabou dessa forma o sonho da "Abadia de Thelema". Proibido de pôr os pés na Itália, Crowley escreveu vários poemas anti-Mussolini; contudo, inversamente às suspeitas deste, ele nunca foi comunista, nem sequer socialista. Mas, apesar disso, também desprezou fortemente os fascistas: antes de ser expulso de Itália já se referia a eles nos seus escritos como os «banditi».
2 - Inversamente à imagem que foi popularizada, Aleister Crowley nunca foi satanista
Aleister Crowley foi um magneto de controvérsia e a imprensa criou-lhe uma imagem exagerada de indivíduo perigoso e perverso. O jornal inglês John Bull, em especial, criou em 1923, na sequência dos "escândalos" perpetrados na "Abadia de Thelema", a mais colorida sequência de epítetos que Crowley teve: «Wizard of Wickedness» (17 de Março), «Wickedest Man in the World» (24 de Março), «King of Depravity» (11 de Abril) e «The Man we'd Like to Hang» (19 Maio). Quando Betty May abandonou a "Abadia", depois da morte do marido, vendeu ao jornal inglês The Sunday Express, por uma boa quantia de dinheiro, um relato difamatório e delirante, em primeira mão, sobre o sacrifício de um gato num ritual satânico na "Abadia", revelando que o marido tinha morrido por beber o sangue desse gato - mais tarde, arrependida, escreveu várias vezes a Crowley, pedindo-lhe desculpas, mas o mal já estava feito. A verdade é que Crowley nunca foi satânico, nem satanista, pese o facto de muitas correntes que professam estas orientações se dizerem inspiradas na sua figura - na realidade, inspiradas pela imagem "cartoonesca" de Crowley, criada pela imprensa.
No sistema mágico e filosófico de Crowley (Thelema) abundam as referências anti-cristãs e anti-clericais, mas Satanás nem sequer está representado de forma simbólica, quanto mais de maneira preponderante. A disciplina de Thelema faz-se de referências que extravasam completamente o espectro das fontes judaico-cristãs e nem de longe forma um corpo antagónico ao cristianismo por via inversa, como o satanismo teísta cifra. É preciso considerar que Aleister Crowley foi um caso paradigmático no ocultismo ocidental do século XX, em virtude da sua educação clássica e percurso de vida muitíssimo viajado: ele recuperou de fontes díspares ocidentais e orientais - a astrologia, a cabala, a magia enoquiana, os mitos egípcios, a alquimia, o I Ching, o budismo, o taoísmo, o yoga - aquilo que mais lhe interessou para criar uma nova filosofia "mágica", mas iniciática, que, pode dizer-se, começa com a escrita de The Book of the Law, mas foi sendo desenvolvida e modificada quase até ao final da sua vida, como se percebe pela publicação póstuma de Magick Without Tears, um livro muito mais luminoso e positivo que The Book of the Law. Às vezes, até se tem a impressão de que Crowley, na tónica que coloca no rigor científico - no método da experimentação empírica e da repetição de resultados -, numa abordagem racional e pragmática às práticas mágicas, se aproxima mais de um ponto de vista ateu ou agnóstico do que de um ponto de vista crente no sobrenatural. De facto, ele escreveu, diversas vezes, que se se fizer determinada acção (mágica) ocorrerá um determinado resultado (mágico), mas que esses fenómenos mágicos são fenómenos naturais: apenas ainda não se encontram explicados pela ciência. Afirma-o, entre outros textos, no Liber DCCCLX:
«I further take this opportunity of asserting my Atheism. I believe that all these phenomena are as explicable as the formation of hoar-frost or of glacier tables. I believe "Attainment" to be a simple supreme sane state of the human brain. I do not believe in miracles; I do not think that God could cause a monkey, clergyman, or rationalist to attain. I am taking all this trouble of the Record principally in hope that it will show exactly what mental and physical conditions precede, accompany, and follow "attainment" so that others may reproduce, through those conditions, that Result. I believe in the Law of Cause and Effect.» [Sublinhado meu.]De qualquer das formas, na visão de Crowley, a magia não deve servir para alcançar objectivos imediatos, mas servir de caminho, de via iniciática, para alcançar-se um grau, um horizonte, mais elevado, mais nobre, que é o da transformação espiritual do indivíduo; transformação a que ele chamou, a dada altura, de «conversação com o Sagrado Anjo da Guarda»: um elemento mais evoluído que a carne e que está presente em todos os indivíduos. Ao longo da vida, Crowley foi desconstruindo o significado de «Sagrado Anjo da Guarda» e acabou por identificar o seu com a inteligência preternatural que lhe ditara o The Book of the Law, no Cairo, em 1904: a misteriosa presença que baptizou de Aiwass e que, para ele, não era nenhum espírito, mas uma inteligência extra-dimensional, à semelhança dos Chefes Secretos da Ordem Hermética da Aurora Dourada ou os Mahatmas da Teosofia de via blavatskyana.
O facto de Aleister Crowley se ter intitulado "Besta 666" nada tem a ver com adoração pelo Diabo, porque ele bem sabia que o número 666 nada tem a ver com Satanás ou com satanismo, mas que significa, na cabala, "Espírito do Sol". No livro bíblico Apocalipse (nome que apenas significa «revelação do que está oculto»), é referido que «o número da Besta é o número de um homem e esse número é 666», porque, de facto, esse é mesmo o número do Homem, já que este foi criado por Deus no Sexto Dia da Criação, como pode ler-se no Génesis. As interpretações erróneas que colam este número ao satanismo são completamente espúrias e nada têm a ver com o significado original dessa referência. A prova de que Crowley sabia muito bem destas relações autênticas (ao contrário dos seus epígonos contemporâneos) é que numa sessão de um processo judicial que moveu contra Nina Hamnett por difamação, respondeu desta maneira ao procurador que lhe perguntou qual era o significado do nome "Besta 666": «Significa apenas Luz do Sol. Pode chamar-me Pequeno Raio de Sol».
3 - Aleister Crowley foi fortemente anti-clerical, mas a sua ideia do nascimento do Novo Éon está impregnada de Joaquinismo
No início do século XIII, já a reforma de Císter ia a meio-gás, o movimento milenarista medieval reforça-se inesperadamente com o desenvolvimento do Joaquinismo: corrente criada em volta das ideias do frade cisterciense calabrês Joaquim de Fiore, falecido em 1202 (a Calábria é a biqueira da "bota" italiana e nessa altura fazia parte do reino da Sicília). Em essência, o modelo milenarista joaquimita consiste numa visão macro-histórica das origens e destino da humanidade, formada por Três Idades, à semelhança da Santíssima Trindade: a pretérita Idade do Pai (os eventos narrados no Antigo Testamento), a presente Idade do Filho (os eventos narrados no Novo Testamento e a Era da Igreja) e a vindoura Idade do Espírito Santo (um período emergente de profunda contemplação espiritual, perfeição e paz). Joaquim de Fiore criou esta doutrina através do estudo do livro Apocalipse e calculou que a Idade do Espírito Santo despontaria em 1260. Três anos depois dessa data, no Sínodo de Arles, o Papa Alexandre IV condenou o Joaquinismo como sendo uma perigosa heresia. Por que é que uma Idade do Espírito Santo, plena de profunda contemplação, perfeição e paz, consistia numa perigosa heresia? Embora a profunda contemplação, a perfeição e a paz joaquimitas fossem conceitos com os quais, em princípio, a Igreja não teria grandes dificuldades em lidar, Joaquim de Fiore também profetizou que a Idade do Espírito Santo traria o desmantelamento definitivo de todas as estruturas eclesiásticas - e isso é que a Igreja não podia tolerar; daí a condenação tout court do Joaquinismo (na verdade, o Papa Inocêncio III já o tinha condenado, mas apenas em parte, em 1215, no IV Concílio de Latrão). Independentemente disso, o Joaquinismo fez furor entre os franciscanos, que sempre foram, de certa forma, bastante anti-institucionais e, ao longo dos séculos vindouros, o milenarismo joaquimita provou ser um poderoso algoritmo, capaz de adaptar-se e dar sentido a um florilégio estonteante de ideias milenaristas de várias proveniências. Entre elas, o milenarismo crowleyano.
Não reste dúvidas que a narrativa apocalíptica de The Book of the Law (até este título é o mesmo nome que os judeus dão ao Pentateuco) é, em essência, uma nova versão do velho ideal milenarista, apocalíptico - em maior espessura, do milenarismo de recorte joaquimita. Na visão milenarista de Aleister Crowley, desenvolvida em The Book of the Law, pedra basilar do edifício de Thelema, as Três Idades são as seguintes: a Idade da Mãe (uma idade que simboliza uma hipotética madrugada histórica matriarcal, cujo narradora é Nuit, a deusa egípcia da Noite), a Idade do Pai (a idade das religiões patriarcais e monoteístas, cujo narrador é Hadit, noivo de Nuit) e a Idade do Filho (o Novo Éon, o início de uma nova idade cósmica, narrada por Ra-Hoor-Khuit, jovem deus rebelde e vingativo, identificado com Harpocrates: o deus grego do silêncio, baseado nas representações infantes do deus egípcio Hórus, o Sol recém-nascido). Assim, pode também dizer-se que Nuit é identificada com Ísis e Hadit com Osíris. Neste modelo milenarista contemporâneo, sincrético, a energia iconoclasta e indomável da juventude, representada pela Idade do Filho, combate com violência o poder institucional e autoritário, mas decadente, moribundo, da Idade do Pai. É, de facto, uma narrativa "revolucionária" que instiga uma mudança violenta contra o estado das coisas - daí, na altura, ter sido entendida como propaganda radical de esquerda. Para Crowley, o advento do Novo Éon, do qual ele se apresentou como profeta, na mesma linha dos profetas veterotestamentários e de Cristo, seria uma ruptura violenta acompanhada de terramotos e guerras. Quando os efeitos catastróficos se dissipassem, instalar-se-ia, como esperado e costumeiro nas ideias milenaristas, a iluminação (thelemita) num período solar de progressão espiritual.
4 - Aleister Crowley "democratizou" as práticas mágicas
No ínicio do século XX, Aleister Crowley quebrou laços com a Ordem Hermética da Aurora Dourada, na qual tinha sido iniciado poucos anos antes. Ele entrou para essa ordem numa altura em que ela estava a ser dividida internamente por culpa de um conflito pela liderança e essa conjuntura atribulada não foi de maneira nenhuma conveniente à sua integração. À parte disso, Crowley hostilizou-se rapidamente, a um nível pessoal, com alguns membros ilustres; entre os quais o poeta William Butler Yeats e o ocultista Arthur Edward Waite, co-criador do baralho de Tarot de Rider-Waite e tradutor para inglês das obras de Eliphas Levi. Em determinado momento, Crowley pôs-se do lado do líder da ordem, Samuel Liddell MacGregor Mathers, na batalha intestina pelo poder, mas não tardou a hostilizar-se com ele e, a partir daí, a saída da ordem tornou-se inevitável. No término de um período subsequente em que se dedicou ao alpinismo (liderou expedições pioneiras às montanhas Kangchenjunga, nos Himalaias, e Chogo-Ri, entre o Paquistão e a China), a viajar pelo Oriente, pelo Egipto e pelo México (onde também fez alpinismo), Crowley voltou a Londres e, a partir de 1907, com a colaboração dos amigos George Cecil Jones (outro dissidente da Ordem Hermética da Aurora Dourada) e John Frederick Charles Fuller, começou a desenvolver a sua própria fraternidade mágica/iniciática: a thelémica Argenteum Astrum (ou, simplesmente, A∴A∴), cujo lema era «The Method of Science, the Aim of Religion». Em pouco tempo, foi criado o órgão oficial de divulgação da ordem, intitulado The Equinox: uma revista corpulenta, bianual, repleta de artigos e ensaios sobre temas esotéricos. O primeiro número foi editado na Primavera de 1909 (o segundo número foi publicado, como é evidente, no Outono - daí o nome da revista). Certamente por despeito para com McGregor Mathers, The Equinox publicou bastante material referente à Ordem Hermética da Aurora Dourada, tornando público um vasto conjunto de referências que, até essa data, era coutada exclusiva dessa sociedade secreta. Na verdade, depois da Primeira Grande Guerra, numa estratégia de escapismo, a Europa devastada virou-se para o oculto e para o fantástico na literatura, nas artes e na vida privada. Toda a gente quis namorar com o oculto e a revista The Equinox foi, nesse aspecto, fundamental, porque havia popularizado, uns anos antes, todo um conjunto de temas e matérias-primas que, já embebidos no caldo cultural, foram instrumentalizados e transformados: a magia e as iniciações deixaram de ser algo mais ou menos aristocrático para, bem ou mal, serem adoptadas pelas massas. Após a Segunda Grande Guerra, o mesmo fenómeno escapista de procura pelo oculto, pelo fabuloso e pelo espiritual fortaleceu-se ainda mais e cristalizou, em definitivo, um pouco por todo o lado, durante o período psicadélico dos Anos 60 e o advento da chamada New Age. Sem a publicação seminal de The Equinox e as restantes obras de Crowley é provável que nada disto tivesse acontecido ou, então, que tivesse acontecido mais lentamente, de forma irregular.
5 - O maior elo de ligação entre Aleister Crowley e Fernando Pessoa foi a paixão pela pseudonímia
Surpreendentemente, Fernando Pessoa e Aleister Crowley tinham bastantes coisas em comum: ambos foram criaturas moldadas por um rigído sistema educacional britânico, sob o qual era mal visto os rapazes demonstrarem as suas emoções (um sistema que fez Crowley explodir e Pessoa implodir); e ambos partilharam o mesmo sentido de humor truculento, o interesse pelas letras e pelo oculto. Para Fernando Pessoa, a iniciação era «uma admissão à conversação com os anjos» e a poesia o canal que conduzia a essa iniciação; tal como para Aleister Crowley o canal para a conversação com o Sagrado Anjo da Guarda era a magia. Mas a maior afinidade entre eles foi, certamente, a paixão pela pseudonímia: Fernando Pessoa criou dezenas de «heterónimos», personagens literárias com biografias, personalidades e estilos autorais distintos, com as quais assinava a maioria dos seus escritos; e Aleister Crowley criou dezenas de pseudónimos para assinar os artigos e ensaios que publicou em The Equinox e diversas personagens com as quais escrevia sobre si próprio nos seus livros. Já em criança, Fernando Pessoa criava personalidades fictícias para assinar pequenos versos, composições ou, simplesmente, para vestir essas peles em brincadeiras com os irmãos: Chevalier de Pas, Capitão Thibeaut, Quebranto Oessus ou Adolph Moscow são algumas das personagens da infância pessoana. Já em adulto, em Lisboa, Fernando Pessoa iria assumir uma espécie de metempsicose zoomórfica através da figura do Íbis: ave pernalta que na mitologia egípcia é avatar do Deus Toth, o criador da escrita e da magia. Durante algum tempo, quando saía com a família, costumava parar de repente na rua para assumir a postura do Íbis, recolhendo uma perna e encostando o dedo ao nariz, para enorme embaraço de quem o acompanhava - era uma pantomima quasi-ritualística, à guisa de santo-e-senha de sociedade secreta. Aleister Crowley tinha, também, uma brincadeira de rua com a qual espantava os amigos e que consistia em seguir um indivíduo escolhido aleatoriamente e imitar-lhe na perfeição os movimentos; quando atingia essa sincronia, simulava uma queda, de repente, e divertia-se imenso a ver o fulano a desequilibrar-se, em grande confusão, sem perceber que força misteriosa o tinha feito tropeçar. Com todas estas afinidades é espantoso que Fernando Pessoa e Aleister Crowley não tenham ficado mais amigos, aquando do encontro de ambos na Lisboa de 1930. É que apesar das semelhanças, existia uma enorme diferença: Crowley era um homem do mundo, um viajante, um extrovertido; Pessoa era um cidadão do imaginário e só viajava por algumas ruas da Baixa Pombalina. Nem Pessoa seria capaz de acompanhar Crowley, nem Crowley seria capaz de ficar quieto para fazer companhia a Pessoa. Vejam bem como uma única diferença pode escavar um fosso tão grande entre duas almas tão parecidas.
6 - Fernando Pessoa era vaidoso e vendia livros velhos para comprar roupas novas
A imagem de um Fernando Pessoa farroupilha, divulgada em grande medida pela popular biografia escrita pelo seu amigo João Gaspar Simões, é romântica, mas não corresponde à realidade. É verdade que Fernando Pessoa passou muitas vezes por dificuldades económicas e que acumulou dívidas de grandeza considerável, mas, felizmente, nunca se viu numa situação de miséria. De facto, nos períodos de maior aflição financeira, não teve pudores em vender livros já lidos, de modo a reunir algum dinheiro: grande parte gasto na compra de roupas novas e acessórios diversos nas mais requintadas casas de Lisboa, como a Camisaria Pitta. Os depoimentos de familiares e amigos são unânimes em esclarecer que Fernando Pessoa «andava sempre bem arranjado», «sempre de camisa muito bem engomada» e que «gostava de vestir com um certo rigor». Ele foi aquilo que na gíria da altura se chamava um "janota", mas ser um janota não era nada barato e sabe-se que Fernando Pessoa até teve uma conta muito esticada num dos mais conceituados alfaiates da cidade, a casa Lourenço & Santos, Lda. Aliás, é o próprio Fernando Pessoa que nos revela, às tantas - com humor -, a sua vaidade, numa passagem que deixou no diário, na entrada escrita a 30 de Novembro de 1915: «À noite fiquei satisfeito por ouvir duas referências diferentes (do Côrtes-Rodrigues e do Perdigão) ao facto de eu estar bem vestido (Oh! Eu!)». Acrescente-se nesta altura que, em Março de 1935, Fernando Pessoa recebeu a quantia de 5000$00 pelo prémio literário Antero de Quental, atribuído pelo Secretariado de Propaganda Nacional e concedido à sua obra Mensagem, publicada no ano anterior a 1 de Dezembro. Ora, oito meses depois de receber esse dinheiro, Fernando Pessoa viria a falecer no Hospital São Luís dos Franceses, no Bairro Alto (provavelmente de pancreatite). Seria reconfortante pensarmos, nós que somos seus admiradores, que Fernando Pessoa viveu os seus últimos meses num justíssimo desafogo que nunca conhecera, mas o facto de ele ter morrido sem deixar dívidas demonstra que gastou grande parte do prémio a saldá-las.
7 - Fernando Pessoa foi um inventor amador
Uma das actividades mais ignoradas pelo público a que Fernando Pessoa se dedicou foi a de inventar novidades - algumas surpreendentes - que pretendia patentear e comercializar. A maioria desses inventos, como os inventos de Da Vinci, nunca saíu do papel, mas entre eles contam-se, por exemplo, um projecto para um novíssimo tipo de carreto para máquinas de escrever, uma inovadora pasta para guardar documentos, um inédito anuário comercial, o Anuário Sintético, nova versão de umas Páginas-Amarelas, e até interessantes jogos temáticos de mesa, sobre futebol, críquete e, ainda, astrologia. Porém, um dos inventos que mais galvanizou Fernando Pessoa foi uma espécie de "carta-sobrescrito" que, segundo suas palavras, seria «a morte do envelope». Após várias experiências, chegou a um feitio que o satisfez e que descreveu com minúcia para efeito de registo de patente (que, provavelmente, nunca pediu). Consistia numa folha de papel dividida em seis partes: na primeira, escrever-se-ia o endereço do destinatário da carta; na segunda, o do remetente; e as restantes partes destinar-se-iam à escrita da mensagem. Esta "carta-envelope" inventada por Fernando Pessoa prefigura, de modo estupendo, o célebre aérogramme (aerograma) que seria comercializado poucos anos depois. Com um bordo gomado que, dobrado e colado, permite salvaguardar de olhos alheios aquilo que nele for escrito, o aerograma é uma única folha - carta e envelope, em simultâneo - que, como o nome indica, se envia por correio-aéreo. Foi desenvolvido pelos exércitos, durante a Segunda Grande Guerra, mas, em seguida, popularizou-se com êxito pela sociedade civil. Se Fernando Pessoa tivesse patenteado o seu invento da "carta-envelope", seria conhecido hoje, justamente, como poeta e como inventor - como inventor do aerograma, pelo menos. Então e o seu futebol de mesa?... Segundo a versão oficial, o futebol de mesa (os matraquilhos) foi inventado em 1921 pelo inglês Harold Searles Thornton, mas, na verdade, os nobres europeus já jogavam uma espécie de futebol de mesa nos salões dos seus palácios, desde meados do século XVIII (numa das salas do Convento de Mafra pode ver-se uma dessas mesas setecentistas de matraquilhos, com intrigantes figuras esculpidas em madeira), logo não podemos atribuir esta invenção a Fernando Pessoa, como lhe poderíamos facilmente atribuir a do aerograma. Compreendam que um homem, por mais genial que seja, não pode estar sempre à frente do seu tempo.
8 - Foi o slogan criado por Fernando Pessoa para publicitar a Coca-Cola que fez com que esta bebida fosse proibida em Portugal
Em 1925, o empresário Manuel Martins da Hora fundou a Empresa Nacional de Publicidade (a primeira agência de publicidade portuguesa), com a colaboração de Fernando Pessoa (segundo as suas palavras até foi Pessoa «a tratar disso» - calcula-se que se referia à "papelada") e com capital social da parceira norte-americana General Motors, mas o empreendimento com a empresa automobilística não arrancou e, seguidamente, fundando uma nova parceria, Martins da Hora tornou-se o representante português da agência internacional de publicidade John Walter Thompson (JWT), mantendo Fernando Pessoa como colaborador (uma colaboração que durou até Setembro de 1935). Por alturas de 1928, Carlos Eugénio Moitinho de Almeida, que também era patrão de Fernando Pessoa, tornou-se o agente português da marca Coca-Cola (conta da JWT) e o poeta foi incumbido de criar a propaganda comercial do refrigerante. Para o efeito, inventou o slogan «Primeiro, estranha-se. Depois, entranha-se». Porém, o médico e professor Ricardo Jorge, na altura Director de Saúde de Lisboa, não apreciou a truculência de Fernando Pessoa, que considerou ser uma descrição fidelíssima do modo insidioso como o organismo se viciava em drogas - primeiro estranhava-as, depois ganhava-lhes habituação: em suma, o slogan pessoano expressava «a toxicidade do produto», derivada do infame composto de coca. Por ter-se alarmado com o slogan inventado por Fernando Pessoa, Ricardo Jorge confiscou o produto e mandou-o atirar ao mar, proibindo taxativamente a introdução da Coca-Cola no mercado português. Somente quarenta e nove anos depois, em 1977, é que essa bebida começou a ser comercializada em Portugal - já com o malquisto slogan de Fernando Pessoa completamente esquecido.
9 - O livro Mensagem foi mal recebido pela Esquerda e pela Direita
A publicação do livro de poesia Mensagem, a 1 de Dezembro de 1934, vencedor do prémio Antero de Quental, atribuído pelo Secretariado de Propaganda Nacional, confundiu negativamente os admiradores de Fernando Pessoa e, também, os Situacionistas: estes, por seu lado, não gostaram do "nacionalismo místico" - esquisito - do livro, completamente apartado de substrato e referências políticas, tanto directas como indirectas, achando-o uma fantasia sem pés nem cabeça; e os outros não gostaram que Fernando Pessoa se estreasse em livro com um texto que, a seus olhos, o cunhava como apenas mais um Situacionista (quando morreu, as notícias do óbito nos jornais foram unânimes em descrevê-lo como «grande poeta nacionalista») e, ainda por cima, que era desprovido da inventividade de forma e linguagem já demonstrada nos vários trabalhos assinados com os seus heterónimos. Embora Fernando Pessoa fosse um desconhecido para a generalidade do público e invisível para grande parte da crítica literária, tinha muitos admiradores entre escritores e artistas, que o respeitavam e, em certos casos, o olhavam como um mestre. Este conjunto de seguidores desgostou muitíssimo da obra Mensagem, na qual não reconheceu o vanguardismo tão apreciado na restante obra de Fernando Pessoa. O próprio sentiu-se embaraçado pelas reacções negativas e tentou explicar-se sem grande êxito diante dos amigos: Mensagem não tardou a cair no esquecimento. Todavia, mais tarde, o livro foi recuperado por um público e por uma crítica despoluídos de fantasmas de época e hoje é justamente celebrado, paralelamente a Os Lusíadas de Luís de Camões, às obras de Fernão Lopes, de D. João de Castro e de António Vieira, como sendo o livro que melhor representa, nas suas dimensões históricas e míticas, aquilo que é Portugal - nome que esteve quase para ser o seu título. Obra aparentemente simples, escrita ao longo de duas décadas (começou a ser escrita em 1913), esconde na sua estrutura e ritmos uma enorme complexidade temática e filosófica que demonstra toda a cultura e inteligência pessoanas.
10 - Existe um retrato a óleo de Fernando Pessoa para o qual ele, de facto, posou
Está exposto na Casa Fernando Pessoa, no bairro de Campo de Ourique, em Lisboa. É a imagem de Fernando Pessoa que podem ver reproduzida acima neste artigo: trata-se de um quadro a óleo, pintado em 1912 por Adolfo Rodriguez Castañé: artista do círculo de Almada Negreiros e Stuart de Carvalhais, que trabalhou como decorador e como ilustrador para publicidade. Também fez bandas desenhadas para o Pim-Pam-Pum! (suplemento do jornal O Século), colaborou com o Topa a Tudo e com a revista Seara Nova. Em 1912 e 1913, participou no primeiro e no segundo Salões de Humoristas de Lisboa. Pessoa foi seu amigo: encontraram-se muitas vezes nos cáfés de Lisboa que aquele costumava frequentar e também em casa de Almada Negreiros. Nasceu em Madrid, a 6 Fevereiro de 1887, mas veio aos cinco anos com os pais para Portugal: a mãe era soprano e o pai era arquitecto. Fernando Pessoa foi uma figura bastante caricaturada pelos seus amigos artistas, como Almada Negreiros e Alberto Cutileiro. Outro retrato de Fernando Pessoa feito por Castañé, mas caricatural, foi publicado, também em 1912, na primeira página do jornal República.
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013
Questionário "proustiano"
Fernando Ariel Garcia, crítico argentino que
escreve no weblog La Bitacora de Maneco, convidou-me para responder a
um inesperado "questionário proustiano" (ao qual já responderam autores
como Miguelanxo Prado, Brian Boland, Enrique Breccia, Eduardo Risso,
entre muitos outros): podem ler as minhas respostas nesta ligação.
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