O objecto deste texto, integrado no espólio arqueológico do Museu de Lisboa, convida-nos a pensar na
estação arqueológica de Montes Claros, na Serra de Monsanto, porque é aí que
começa o seu exame, mas, ainda assim, vamos olhar durante um momento para,
literalmente, além Tejo, no sentido da vila de Arronches, da qual à antiga
capital da província romana da Lusitânia, Emerita Augusta, ou Mérida, fundada
em 25 a.C., se vai num fôlego. Não muito longe dessa vila alentejana, na orla
do Parque Natural da Serra de São Mamede – nome que tanto evoca o leão sagrado,
que no brasão da antiga freguesia homónima de Lisboa agarra uma palma de
martírio, como a batalha vimaranense que espoletou a fundação de Portugal –,
alcandora-se um antro mais vezes sobrevoado por abutres que pelos gaivões que
lhes estão no nome. Na Lapa dos Gaivões (não confundir com gaviões) pode
observar-se um conjunto pictórico datado do terceiro milénio antes de Cristo:
pintado a zarcão, plúmbeo pigmento que os monges medievais chamavam minium e que está na origem da palavra miniatura, encontra-se um grotesco
grafito que mais parece um borrão feito pelo iluminista António d’Ollanda no
trapo de limpar os pincéis. E, no entanto, esse borrão, tão indeciso entre o
Neolítico e o Calcolítico quanto um hipnopompo na fronteira entre o sono e o
despertar, é uma imagem simultaneamente sacrossanta e vanguardista.
Mais carácter que figura, somente os cornos lhe
denunciam a condição totémica à qual ainda está arreigado, mas já é uma forma
de transição entre aquilo que se vê e aquilo que se imagina; um tipo de
representação gráfica que está a caminho da caligrafia, do alfabeto. Flanqueado
por dois antropomorfos acéfalos, esta personagem pertence à linhagem ilustre de
imagens que inclui os ideomorfos da gruta francesa de Chauvet, o Homem-Leão de
Hohlenstein e os pictogramas da gruta indiana de Bhimbetka, mas, mais do que
isso, é um dos símbolos mais desenhados e esculpidos pela humanidade: o
Homem-Cornudo. Este glifo da Lapa dos Gaivões, pintado num local adequadíssimo
para nos deixarmos devorar pelas ideias, é mais autêntico que o espalhafatoso
feiticeiro do santuário cavernícola de Trois-Frères, em França, a mais
conhecida imagem do género. Autêntico, porque é despojado de quaisquer ideologias,
senão a dos próprios cornos: são eles que interessam, verdadeiramente, estejam
numa cabeça humana ou animal. São símbolos de soberania sobrenatural e sexual,
instrumentos de revelação, e desde a alvorada da imaginação foram respeitados e
reverenciados pelos nossos rupícolas antepassados. Facto que nos conduz de
volta à Serra de Monsanto e ao fragmento calcolítico de queijeira.
Não pode assegurar-se por que razão é que nos
lembrámos de começar a beber leite, mas no resultado de recentes análises a
diversos fragmentos de cerâmica datados do sétimo milénio antes de Cristo,
sabe-se que pertenceram a recipientes usados para guardar leite e para fazer
queijo, por isso tudo indica que nos tornámos galactófagos – ou seja, capazes
de digerir a lactose –, logo que aprendemos a domesticar cabras, ovelhas e
vacas. Comparativamente à criação de gado para consumo de carne, as rotinas
relacionadas com a produção de leite são muito exigentes; nesta perspectiva,
interrogo-me sobre se poderia ter estado envolvido algum sentido simbólico ou
religioso nestas práticas. Um novo tropo cultural capaz de conquistar a nossa
intolerância inata à lactose para, a partir daí, tornar-se, simplesmente, outro
aspecto da vida quotidiana? Se sim, isso poderia dissipar a dúvida sobre por que
é que se continuou a tentar beber leite, depois de se ter ficado indisposto
nas primeiras vezes. Se sim, qual a natureza da comunhão que desejava
cumprir-se mediante a ingestão de leite? Com que espécie de divindades se
tentava comunicar?
Perto de 3500 a.C., antes da construção da esfinge
e da época das pirâmides, os primitivos agricultores e pastores que habitavam
nas margens do fértil delta do Nilo idolatravam uma divindade chamada Bat,
representada com um rosto feminino, orelhas de vaca e pulcros cornos curvados;
mais tarde, quando essa civilização se converteu numa monarquia, os faraós
passaram a ser solenizados à nascença com o epíteto sagrado de “touros de sua
mãe Bat” (ou Hathor, como veio a ser chamada nesse período): mitopoesia
concebida para transmitir a mensagem de que descendiam da velha vaca deusa. As
ossadas de vaca achadas em escavações arqueológicas nesses cenários mostram que
os bovinos só eram abatidos quando envelheciam e existe a teoria de que o gado
era inicialmente criado não só para se beber o leite, mas principalmente o seu
sangue – tal como as tribos subsarianas Batemi e Masai ainda hoje fazem para
enriquecer dietas que não se afastam dos moldes em que era constituída a dos
avoengos egípcios. Antes da criação e difusão dos suplementos alimentares
contemporâneos, foi frequente a prática de equilibrar os regimes cruelty free com a imisção de sangue ou
acrescentando tutano à confecção dos pratos; foi neste feitio que a cozinheira
austríaca Constanze Manziarly confeccionou as refeições de Hitler – que, apesar
de vegetariano, comeu conservas Atum Ramirez enquanto esteve escondido no bunker berlinense.
Todavia é persuasivo considerar que não estamos,
somente, a falar de nutricionismo neolítico: sangue e leite sempre foram
observados como sendo médiuns da força vital. Se há verdade no pregão que
anuncia que se é aquilo que se come, então ser-se uno com o divino, por
ingestão, é devoção no seu estado mais primário e impetuoso. A profusão de
religiões baseadas na bovinolatria que podem contabilizar-se a partir deste
período demonstra a importância que esses animais tiveram no espaço económico e
cultural das novas civilizações sedentárias. Escutam-se ecos destas
espiritualidades no episódio tauróctono descrito por D. Mariana Vitória, nora
de D. João V, à sua mãe, D. Isabel de Farnésio, segundo o qual o rumor de
encomendar-se um grande boi para abri-lo e introduzir lá dentro o rei, de
maneira a curá-lo da lástima provocada pela apoplexia, era falso, porque o boi
não era para ele, mas para o príncipe D. José meter lá dentro o braço e a sanar
a mão enferma. Nos antigos cultos solares, como o de Mitra, o tirocínio a que
está sujeito o Deus-Sol durante o Inverno é ensaiado sob a forma de um festim
no qual os iniciados consomem um touro sacrificado: é uma representação da
morte que abre caminho à ressurreição; noção que no cristianismo já encontrava
um correlativo na história da crucificação. Em síntese, é uma variação do
influente mitema a que se deu o nome de “rei adormecido” ou “encoberto”: após
um estágio na entenebridade, o protagonista desperta, transformado em Rei – a
origem destes cerimoniais salvíficos é, evidentemente, a vitória da Primavera
sobre o Inverno, o ressurgimento radiante do Sol. Os homens têm uma tendência inata para segui-lo – inclusive
nos rituais que vão formando para dar luz a um mundo brumoso e adverso. Mas de
que espécie teria sido ordenhado o leite com o qual se fez o queijo que
fermentou na nossa queijeira da Serra de Monsanto?
A teoria de que os bovídeos domésticos europeus
descendem de auroques domesticados na Mesopotâmia entre 7000 a.C. e 6500 a..C.
está comprovada por análises de ADN mitocondrial. Foram encontrados ossadas de auroques
peninsulares em escavações na Sé de Lisboa, nas camadas referentes aos
primórdios da Idade do Ferro, mas não existem provas de que esta espécie tenha
contribuído para o genoma dos nossos bois contemporâneos; é uma descoberta que
somente comprova a coexistência – não é surpreendente, porque o auroque só se
extinguiu no século XVII. Porém, existem raças cujo genoma sugere outras
familiaridades, como a ascendência Turdetana da raça bovina alentejana, que
chegou já domesticada à Península Ibérica, vinda do Egipto – e, nem de
propósito, as comoventes esculturinhas de barro que datam dos tempos
pré-faraónicos, figurando bois jugados a pastar, mostram que essa espécie
egípcia, de cornos largos e revirados para baixo, talvez descendente de um
extinto antepassado africano (1),
se assemelha muitíssimo aos touros típicos das regiões que os romanos
cognominaram de Tarraconense, Bética e Lusitânia. Apesar de tudo, o gado bovino
nunca terá sido abundante nesta altura (2) e
é mais provável que os criadores de animais que foram amáveis o suficiente para
deixarem-nos os seus restos mortais na estação arqueológica dos Montes Claros
fossem simples pastores de caprinos: criaturas capazes de sobreviver com os
arbustos alcantilados das mais sáfaras serranias. Por conseguinte, o queijo que
nos traz aqui à colação foi, certamente, feito com leite de uma cabra
calcolítica.
O nome Calcolítico é formado por duas palavras
gregas: calkos, que significa cobre, e lithos, que significa pedra.
É um período intermediário entre o Neolítico e a Idade do Bronze, denominada
Eneolítico (a palavra grega eneo significa
bronze), e assinala o aparecimento de
objectos manufacturados em metal (o cobre), ao mesmo tempo que a pedra
permanece em uso; logo, estamos na madrugada metalúrgica da humanidade, mas os
velhos modos de vida ainda não foram substituídos, como atesta o nosso
fragmento de queijeira. Ao mesmo tempo que se fala em cobre, pode falar-se, por
exemplo, de estanho ou de chumbo: metais dúcteis e fáceis de fundir a baixas
temperaturas, ao contrário do ferro, que precisa de uma temperatura de 2000º
para fundir-se. Quando se diz que o cobre é dúctil, isso não significa que seja
uma espécie de não-metal: é preciso considerar que os netos dos adoradores de
Bat construíram as pirâmides com ferramentas de cobre muito elementares – mas
extraordinariamente eficazes –, tornadas ainda mais afiadas em conjugação com o
efeito abrasivo da areia. Mas o bronze, que é feito ligando-se cobre com
estanho, revolucionou os estilos de vida das civilizações; principalmente,
permitiu-lhes investir em algo que já andava a ser adestrado desde que as
inaugurais sociedades sedentárias levaram a extremos, até então nunca vistos,
as noções de “meu” e “teu”: a arte da guerra. As armas que fazem as delícias
dos leitores de A Ilíada, por
exemplo, são todas feitas de bronze. Existe uma correlação entre o nosso queijo
calcolítico e as armas de bronze: são proveitos de uma economia de mercado. No
caso das armas, povos do Mediterrâneo Oriental, como os fenícios, trocavam os
seus produtos autóctones por estanho, que iam buscar a litorais longínquos,
como o paredão pedregoso da Irlanda ou as enseadas encantadoras da occídua
fronte peninsular. Mas no que concerne ao queijo, o segredo é o sal.
Na Ilíada,
que mencionei há poucas linhas, Hecamede, capturada por Nestor para ser sua
criada, inaugura uma combinação gourmet
que ficou famosa até hoje, ao servir um bom queijo de cabra com um bom vinho de
Lesbos (o facto dela ter ralado o queijo para dentro da taça de vinho não
provou ser nenhum impedimento). Todavia, A
Odisseia revela-nos que Polifemo, o ciclope que quer devorar Ulisses, é,
apesar da sua imbecilidade ovina, um extraordinário queijeiro: tem a caverna
cheia de enormes queijos deixados a curar, cujo cheiro faz crescer água na boca
aos companheiros de Ulisses. Sem desconsideração para Homero, é mais provável
que o queijo tenha sido descoberto por acidente como consequência do costume de
beber leite – e de maneira muito semelhante à forma como se descobriu a
cerveja, porque ambos são fruto da fermentação –, do que inventado por um
gigante antropófago. Tudo terá começado quando algum antigo pastor se esqueceu
de beber o leite que guardou num odre feito de estômago de cabra ou de ovelha:
ao permanecer mais tempo em contacto com esse revestimento rico em quimosina –
enzima que possui propriedades coagulantes –, o leite, simplesmente, coalhou.
Não terá demorado muito tempo até que, por experimentação, se tenha concluído
que mergulhando no leite as coalheiras de crias por desmamar se acelerava e
aperfeiçoava o processo (a coalheira é a última câmara do estômago dos
herbívoros ruminantes: os restantes compartimentos gástricos chamam-se pança,
barrete e folhoso). A nossa queijeira calcolítica seria mais ou menos
assim: um coador cilíndrico de cerâmica com duas bocas para introduzir a
coalhada e paredes perfuradas para que o soro do leite escoasse. Parece ser uma
tecnologia muito básica e ineficiente, mas até os queijos industriais continuam
a ser feitos segundo estes princípios básicos. Objectos desta natureza assinalam a chamada "Revolução dos Produtos Secundários", na terminologia do arqueólogo inglês Andrew Sherratt.
Os romanos foram, como os gregos, apreciadores de queijo e o nome em
latim para este género de queijeiras é forma,
do qual derivam os nomes italiano e francês para queijo: formaggio e fromage. A
nossa palavra queijo não originou
desse nome em latim para queijeira, mas do nome romano para o próprio produto: caseu, que significa amargo. É, de facto, muito parecido com
as palavras em latim para choça e infortúnio: casa e casus. A primeira
é, como é evidente, a nossa palavra casa,
que os romanos nos deixaram quando por aqui passaram. É que, em latim, a
palavra domus, popularizada por
tantos livros e filmes como sendo a palavra para “casa”, significa uma grande
propriedade abastada, mais a familiae
(escravos) que lhe está agregada, e relaciona-se com a palavra dominus, que se traduz por amo ou proprietário. Segundo o latim, todos nós vivemos em choças.
Será que existe uma analogia significante entre
estes étimos em latim para as nossas palavras “queijo”, “casa” e “infortúnio”?
Em A
Anatomia da Melancolia, Robert Burton medita sobre as faculdades morbígeras
do queijo e das restantes «viandas de
leite», como lhes chamava D. Duarte – o nosso rei mais “burtoniano” –,
porque sendo alimentos “frios” têm o poder de estimular o frio humor «merencórico» (outra designação
“duartiana”, anotada em O Leal Conselheiro).
Que afinidade se aglutina entre o queijo e a amargura? Desfraldo neste instante
um parêntesis para pensar sobre a influência que poderão ter tido nesta matéria
uns hipotéticos e rústicos queijeiros, trabalhando amargamente em choças de
colmo – não dissemelhantes às dos pastores portugueses, que perduraram até ao
século XIX – para produzir agres queijos que iriam vender no mercado.
No seu Livro
das Grandezas de Lisboa, Frei Nicolau de Brito garante que os queijos do
reino de Portugal são «os mais estimados
e nomeados que há no mundo». Descontado o pendor que o cronista tinha para
o exagero, esse engrandecimento encerra uma pequena verdade: poderão não ser os
melhores do mundo, mesmo que o da Serra de Estrela – feito a partir de leite de
ovelhas que Gil Vicente chamou de «meirinhas»
(que é como quem diz “lanudas”) – e o de Serpa (também de leite de ovelha)
mereçam essa distinção, muito cobiçados são, sem dúvida.
Então e o da Serra de Monsanto?
Infelizmente ou felizmente, esse ficou, em rigor,
para a história. Aquilo que nos desvendou sobre as incipientes lactoindústrias
do Calcolítico, nas suas dimensões mitológicas e práticas, aplanou-nos o degrau
cronológico pelo qual ascenderemos a uma Lisboa ainda longe de ser a nossa, mas
muito próxima do protótipo cosmopolita, tal como o petroglifo cornuto da Lapa
dos Gaivões se declina de desenho para carácter. O sal, como vimos, é o segredo
– do queijo e do aplainamento do nosso degrau.
Os caçadores-recolectores nunca trocaram nenhuns
objectos por sal, como os agricultores e os pastores fizeram, porque eles
encontravam sal, naturalmente, na dieta variada que colhiam e capturavam; em
semelhança, os animais selvagens não precisam que lhes dêem sal a engolir, como
precisam os domésticos. Para manterem-se vivos, espécies corpulentas como bois
e cavalos precisam até dez vezes mais sal do que nós – é indispensável. A falta
de sal dá dores de cabeça e tonturas, provocadas por hipotensão arterial,
depois vêm os vómitos, porque sem sal não se é capaz de digerir uma simples passa;
em seguida, deixa-se de pensar com clareza, num torpor irascível, e é-se
derrotado por uma estranha exaustão que, por mais que se repouse, não
desaparece. Finalmente, cai-se num coma e morre-se, porque sem sal as células
não são capazes de nutrir-se e expiram de desidratação. É uma morte traiçoeira,
porque nunca, em momento algum, se sente vontade de comer sal. Hoje,
felizmente, os alimentos que consumimos e a água que bebemos das nossas
torneiras, cheia de sais e minerais fundamentais, ajudam-nos a manter
equilibrado o nível de duzentos e cinquenta gramas de sal que precisamos para
sermos saudáveis, mas que os nossos metabolismos gastam com celeridade. Os
romanos não foram nenhuns tolos ao preocuparem-se tanto com esta questão, ao
ponto de pagarem aos soldados em sal.
(1) No sítio arqueológico Ouede Mathendous, na Líbia, é possível observar
várias gravuras de animais, feitas em rochas de arenito, datadas de há oito mil
anos; entre elas, a de uma espécie extinta de bovino (auroque ou búfalo) que
poderá ser o antepassado dos primitivos bovinos egípcios.
(2) As escavações supramencionadas no início do parágrafo, no estrato referente
à Idade do Ferro investigado na Sé de Lisboa, desvendam que o gado bovino
continuava a ser pouco consumido, em relação ao ovino e ao caprino.