quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O meu novo livro para 2012 e os Vampiros de Alfama


O meu novo livro, que será de não-ficção, irá, entre muitos outros assuntos, falar do livro Les Vampires de l'Alfama (1975) do cineasta francês Pierre Kast. Sim: o título refere-se ao bairro de Alfama, em Lisboa.

Para saberem mais sobre Les Vampires de l'Alfama - e sobre muitas outras coisas - ainda terão de esperar uns meses, mas fiquem atentos porque irei desvendando novidades.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Pais da Ficção Científica


Em From Paralysis to Fatigue, Edward Shorter enuncia a existência de “reservatórios de sintomas”: aglomerados ideais, preenchidos pelas tendências predominantes dos períodos que permeiam. São, em simultâneo, influenciáveis e influentes. Faz sentido falar em “sintoma”, porque a palavra também significa “presságio”; logo, as mutações que afectarão a sociedade poderão ser calculadas pelo estudo do “reservatório de sintomas”.

Nas primeiras décadas do século XIX, os Estados Unidos foram desinquietados pelo Segundo Grande Despertar: revivalismo religioso, de natureza arminiana, que quis repor o rigor protestante, perdido em favor do agnosticismo estimado pelos Pais Fundadores. Foi um período em que a ciência manteve a orientação de que deveria glorificar o desígnio de Deus. Entre os astrónomos americanos e europeus, a maioria era composta por teólogos crentes num pluralismo cósmico teísta (como William Herschel, descobridor de Úrano e da radiação infra-vermelha), sob o qual o universo era populado por raças tementes a Deus. Reverendos astrónomos, como Thomas Dick, acreditavam que a Lua era habitada por uma civilização isenta de pecado (Dick até calculou que ela perfazia o número de 4,2 mil milhões de indivíduos) e Von Littrow e Friedrich Gauss arrogaram ser possível comunicar com os selenitas. A crença no povoamento da Lua foi aceite por todos como provável: fez parte do “reservatório de sintomas” desse tempo.

Em Agosto de 1835, o jornal nova-iorquino The Sun publicou uma série de artigos sobre a descoberta do astrónomo John Herschel (filho de William Herschel), isolado na África do Sul. Lendo o seriado, intitulado Great Astronomical Discoveries Lately Made by Sir John Herschel, L.L.D. F.R.S. &c. at the Cape of Good Hope, o público ficou a saber que a Lua tinha florestas, lagos e era habitada, entre outras espécies (como castores bípedes), por inteligentes híbridos de humano com morcego, capazes de construir igrejas. Graças a um novíssimo procedimento óptico (descrito ao detalhe), que permitia a magnificação das imagens telescopiadas sem que perdessem definição, Herschel desvendava que o homem não estava sozinho no sistema solar. The Sun, criado em 1833 por Benjamin Day, já revolucionara cabalmente o modo de fazer jornalismo, ao lançar-se no mercado em pequeno formato e com custo de um penny: foi o primeiro diário popular, com características actuais, e as novidades sobre os selenitas transformaram-no no título mais vendido. À edição episódica advieram as panfletárias, com litografias dos homens-morcegos voando entre vulcões, lagos e cascatas lunares. Os restantes periódicos norte-americanos (e europeus) não perderam tempo em republicar o material na integralidade, mas James Gordon Bennett, proprietário e editor do diário nova-iorquino Herald, concorrente do The Sun, não acreditou na descoberta e iniciou uma campanha para que Richard Adams Locke (editor do The Sun) assumisse a autoria das espantosas “noticias”. Com efeito, fora Locke a escrevê-las; e em 1840, numa crónica publicada no semanário New World, assumiu que quisera satirizar a crendice com que a ciência, em particular a astronomia, era praticada nas academias, mas, infelizmente, ninguém compreendera o ponto de vista. O seu único trabalho ficou conhecido como Grande Embuste da Lua.


Foi o “reservatório de sintomas” da época, recheado com a crença na Lua habitada e a exuberância da emergente imprensa popular, que serviu de placenta ao desenvolvimento de um inédito género literário que iria aperfeiçoar-se no início do século seguinte. No dia 3 de Setembro de 1835, Bennett escreveu no Herald um artigo intitulado A New Species of Literature: nessas linhas, cunhou o estilo de Locke como sendo «scientific novel». O seriado foi pioneiro na descrição meticulosa de uma tecnologia óptica especulativa que credibiliza a história do ponto de vista científico: o texto suspende-nos a descrença porque ciência e ficção se entrosam com harmonia – e esse cruzamento aparece pela primeira vez pela mão de Locke, assim como a designação «scientific novel», inventada pelo editor rival Bennett, antecipa em quarenta e um anos a de «scientific fiction», criada por William H. L. Barnes na introdução que escreveu para a colectânea de homenagem póstuma a Caxton (W. H. Rhodes), e em noventa e um anos o uso dado por Hugo Gernsback no primeiro número de Amazing Stories. Conclui-se que Locke, com o estilo inédito, e Bennett, com a designação que lhe deu, foram os pais remotos da ficção científica.


Locke atreveu-se a imaginar sobre a Lua e num precursor jornal popular mostrou-nos como imaginar o século XX. Sem Locke talvez não houvesse Verne e Wells e sem os seriados e folhetins do The Sun talvez não houvesse fanzines, nem weblogs. A Lua deu-lhe ainda oportunidade de usá-la como alegoria de uma sociedade sem escravos, num momento em que Nova Iorque era a cidade mais sulista dos estados do Norte. A especulação fantástica podia, afinal de contas, falar de problemas reais.

O período supracitado, cheio de convulsões, prova que só o fantástico pode salvar a cultura de tornar-se o epifenómeno subserviente de um mercado cada vez mais volúvel e falsamente personalizado. É olhando para a Lua, domínio argênteo da Imaginação, que se pode observar sem cegueira a luz do Sol, radiância dourada da Obra.

Fantasiando, planeia-se o futuro.

(Crónica publicada originalmente no nº 11 da Revista BANG!, editada pela Saída de Emergência.)

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Aforismo


A cultura verdadeira é matéria efervescente, infundida de ânimo pelo fogo da imaginação, mas é, também, plutónica - abissal - e à sua superfície solidifica-se outra cultura: leviana; em cremosos atóis que ocultam a agitação inferior, mas que nunca poderiam existir sem ela. São, pois, duas culturas diferentes - uma profunda, límpida e transformadora; e outra informe, inútil e opaca.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Alguns livros publicados em 2011...

...que eu recomendo. Li outros que recomendaria, de igual modo, mas não foram publicados em 2011. Desde literatura contemporânea a divulgação científica, história a literatura de viagens, as minhas escolhas de livros publicados em 2011 são as seguintes:



Literatura contemporânea: The Tiger's Wife, de Téa Obreht.

A escritora norte-americana Téa Obreht (nascida em Belgrado) mata dois coelhos com uma cajadada: em primeiro lugar, ganha com distinção a categoria de Most Shaggable Writer e, em seguida, demonstra que a idade de um escritor não é desculpa para se escrever lixo. Com apenas vinte e seis anos de idade, Obreht escreveu um livro ao qual não falta nada e que, neste momento, já é um clássico no seu próprio tempo. O escritor alemão Thomas Mann ganhou em 1929 o Prémio Nobel da Literatura com o romance Buddenbrooks: Verfall einer Familie (Buddenbrooks: Declínio de uma Família), publicado em 1901 quando tinha apenas vinte e seis anos de idade (começou a escrevê-lo aos vinte e um) - é evidente que não comparo Obreht com Mann, apenas reforço a ideia de que a idade de um autor não interessa nada para a qualidade da obra: quem é bom, tanto é bom aos vinte e seis anos de idade, como aos sessenta e seis e quem é mau aos vinte e seis anos continuará a ser mau daí em diante. Não existem escritores em potência: existem escritores, ponto. The Tiger's Wife é enigmático, elegante, esquisito, encantador e apesar de ter sido escrito por uma jovem louríssima que, à primeira vista, mais parece ter saído de um casting para o programa A Casa dos Segredos (as aparências iludem - nunca se esqueçam), não consiste em "literatura de mulheres" ou "para mulheres" (seja lá isso o que for): é "apenas" literatura - da melhor que aí anda - e isso basta-lhe.



Literatura Fantástica: Eutopia: A Novel of Terrible Optimism, de David Nickle.

Sem dúvida, um dos mais bem escritos livros de literatura fantástica editados em 2011. Depois de escapar por uma unha negra a um linchamento às mãos do Ku Klux Klan, o protagonista
Dr. Andrew Waggoner (um médico negro) é envolvido na estranha comunidade Eliada, situada no estado norte-americano de Idaho e feita à medida por métodos eugénicos, que se propaga "pacificamente" na periferia de uma floresta ameaçadora, na qual misteriosos autóctones consanguíneos andam à solta. Em paralelo, o jovem Jason Thistledown vê-se, com estupefacção, como o único sobrevivente de uma doença temível que eliminou todos os habitantes da sua vila de Cracked Wheel, no estado vizinho de Montana. Enredado na comunidade de Eliada, Thistledown alia-se a Waggoner para descobrir as razões da sua sobrevivência. Eutopia: A Novel of Terrible Optimism é gothic as fuck e uma sofisticada peça de ficção de horror. Pensem em Lovecraft, pensem em Stephen King, pensem em Dan Simmons... e passem-nos ao lado para ler o canadiano David Nickle, que os mete a todos no bolso - mas à vontade - com este tour de force perturbador e pertinente.



Literatura Fantástica: Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa: Os Melhores Contos do Século XX (Organização e introduções de Luís Filipe Silva).

Fabuloso livro que, com engenho e bom-gosto, cria o ilustre passado ficcional da pulp fiction portuguesa. Com edição e design de Luis Corte Real (editor da Saída de Emergência, que publica este volume) e organização e introduções de Luís Filipe Silva, Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa é uma antologia superior: visualmente é espantosa, plena de
irrepreensíveis reproduções gráficas ao estilo das mais aparatosas revistas pulp, e as introduções que a pontuam são, por si só, extraordinárias peças de ficção que, no cômputo, perfazem uma cativante galeria. Tudo em Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa é fresco, vivo, apaixonante. O futuro da literatura fantástica portuguesa, por mais negro que venha a ser, nunca será tão sombrio quanto seria se não tivesse este fictício passado glorioso para servir-lhe de horizonte da memória. E, com efeito, que melhor passado para um género literário que um passado ficcional? Precisávamos dele.



Não-Ficção: Moby Duck:
The True Story of 28,800 Bath Toys Lost at Sea and of the Beachcombers, Oceanographers, Environmentalists, and Fools, Including the Author, Who Went in Search of Them, de Donovan Hohn.

Um genuíno e belíssimo trabalho de jornalismo de investigação, sem pretensões a ser lido como um romance ou coisa análoga, escrito com muita inteligência e coração. Com efeito, não há nada, mas mesmo nada, em Moby-Duck que seja mau, pedante, tíbio, afectado, preguiçoso, mal-intencionado ou cínico. Consiste num livro rigoroso, no que diz respeito ao discurso científico - sem alegorias ou facilitismos baratos que tornem simplório o fascinante conteúdo técnico - sobre a manufactura de 28 800 criaturinhas plásticas (os chamados Friendly Floaties, que caíram de um cargueiro no Oceano Pacífico quando a embarcação navegava em direcção aos Estados Unidos), sobre a odisseia oceanográfica através dos tempos e sobre a análise da poluição dos mares. E, ao mesmo tempo, no modo autêntico, liberto de tiques de vedetismo, como Hohn expõe a sua trajectória pessoal e a dos seus comparsas honorários na busca pela verdadeira história dos Friendly Floaties, invocando autores como Melville e Conrad, entre outros, é capaz de oferecer um cunho poético à investigação, ancorada em incursões históricas por clássicos mitos teriomórficos, pelo contemporâneo glamour da publicidade e, sobretudo, por uma prosa cuidada, assinalada em apontamentos de grande delicadeza. Um triunfo.



História: Cristianismo Iniciático, de António de Macedo.

Como classificar este livro de António de Macedo? Monumental? É um bom começo. Uma profunda e meticulosa perspectiva história sobre o gnosticismo e as influências ditas esotéricas nas tradições crísticas que, em simultâneo, desmistifica e esclarece. Numa divisão do capítulo cinco, intitulada "Um Pouco de História Contrafactual", Macedo cria uma peça de história virtual na qual especula sobre qual seria o estado da cultura ocidental se essas influências "esotéricas" não tivessem existido: quão pobre seria, de facto. Embora o título do livro seja Cristianismo Iniciático, o texto não se esgota nesse tema: é, pois, um verdadeiro mapa para as origens do mundo ocidental contemporâneo e a erudita escrita de Macedo é exacta como a agulha de uma bússula. Um livro magnífico, escrito por um dos nossos mais brilhantes polímates.



Política e Estudos Sociais: The Origins of Political Order: From Prehuman Times to the French Revolution, de Francis Fukuyama.

Nesta primeira parte de uma obra dedicada às origens e ao futuro do fenómeno político, o politólogo norte-americano Francis Fukuyama apresenta-se como um homem novo, liberto da tónica neo-liberal. Uma excelente e erudita mistura de teoria política, história e filosofia que, de certeza, meteu medo a quem tem uma visão meramente economicista do mundo e pensou ter um aliado em Fukuyama. Nesta altura em que o ensino da filosofia foi extinto dos currículos e o da história é considerado como não sendo estruturante, este opus de Fukuyama, que ainda tem como "quarta coluna" a ciência, é um tóteme de tinta ainda fresca que testemunha a vitalidade dessas disciplinas. Uma análise audaz, cuja conclusão aguardo com expectativa.



Divulgação Científica: The Hidden Reality: Parallel Universes and the Deep Laws of the Cosmos, de Brian Greene.

Acho que The Elegant Universe (1999), livro de estreia do físico norte-americano Brian Greene é um livro extraordinário - temerário, até -, mas a obra seguinte, The Fabric of the Cosmos (2005), é exageradamente reader friendly para o meu gosto: demasiadas alegorias baseadas em americana para tornar perceptíveis, ao leitor leigo em física, conceitos complexos como a teoria de cordas e a estrutura das dimensões paralelas. Felizmente, em The Hidden Reality, Greene recupera o estilo seco do seu primeiro trabalho, oferecendo mais uma visão desafiante da(s) realidade(s). Na página 163, o próprio autor pergunta com ironia «Is this science?» - citando Jack Nicholson em Batman (1989), eu respondo que "I don't know if it is, but I like it". (Leiam The Elegant Universe primeiro, contudo.)



Esoterismo: Quando o Xamã Voava: Sonho, Erotismo e Morte no Xamanismo, de Gilberto de Lascariz.

Embora seja natural incluir este livro na categoria supracitada, ele apresenta-se mais como uma análise histórica - e erudita - sobre o fenómeno xamânico, desde as suas origens até às formas nas quais se manifesta presentemente. Com uma força, eloquência e sentido poético que não são habituais na maioria dos autores que se dedicam à escrita de livros esotéricos, Lascariz apresenta uma visão simultaneamente histórica e pessoal sobre o xamanismo (o verdadeiro, de raiz siberiana), assente na experiência, no rigor documental e no fulgor ferino da imaginação.



Literatura de Viagens: Estonia: A Ramble Through the Periphery, de Alexander Theroux.

A mulher do escritor norte-americano Alexander Theroux, a pintora Sarah Son-Theroux, viajou até à Estónia, ao abrigo de uma bolsa atribuída pelo Programa Fullbright, e ele acompanhou-a durante parte da estadia, aproveitando para estudar o país e anotar algumas considerações. Na sua estreia na literatura de viagens, o género habitual do seu irmão mais novo e mais célebre Paul Theroux, Alexander Theroux apresenta-se com um estilo surpreendentemente acessível (acessível em padrões "alexandertherouxianos"), mas não menos enciclopédico. Sem nunca perder o Norte (trocadilho intencional), Theroux usa a Estónia como pretexto para ensaiar os mais diversos temas - e se nem sempre concordo com as suas opiniões, é sempre um prazer imenso lê-las, em virtude da solidez e honestidade intelectual com que as fundamenta. Um bom livro para quem quer iniciar-se sem grandes espaventos na escrita deste verdadeiramente genial autor, mas que não possui nem a força nem o resplendor dos seus maravilhosos romances.




Teatro: O Sangue e o Fogo, de António de Macedo.

As três peças teatrais da autoria de António de Macedo que, neste volume, se reúnem sob a designação O Sangue e o Fogo podem ser lidas, de facto, como variações de um tema principal. Plenas de significado esotérico, pedem para ser cotejadas com três estágios da Grande Obra: nigredo, albedo e rubedo. A última peça, sobre as consequências da descoberta do registo da voz do Cristo histórico num artefacto de barro, no qual o estilete do oleiro fez de agulha de um gravador de discos de vinil, é de antologia.
Inteligente, inventiva e até insolente, esta ficção fantástica de teor alquímico vai transformar as vossas almas.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Polissemia


Depois de um trocadilho ingénuo com um amigo reflicto com alegria sobre o espantoso facto de que a palavra portuguesa pasta é bem capaz de ser uma das mais polissémicas do nosso léxico. Lembro-me dos seguintes significados: dentífrico; terceira pessoa do singular do verbo pastar; mala; directoria de um disco rígido; massa alimentícia; ministério; mistela para rebocar paredes; dinheiro.

(O magnífico reclamo que ilustra este post foi publicado no peródico português O Século Ilustrado nº346, em 1944. Confiram aqui. Juro que não é nenhuma alegoria do tempo presente.)

História ou estória?


Uns amigos pediram-me que os esclarecesse sobre a palavra estória: seria correcta, seria incorrecta?... Depois de responder-lhes, achei que o esclarecimento poderia interessar a mais leitores e, por conseguinte, transcrevo-o para este post:

«A palavra estória (que eu detesto - tenho palavras que gosto e outras que não gosto) já aparece mencionada em escritos portugueses do século XIII, mas a sua origem permanece ambígua.
A hipótese que se afigura como sendo a mais verosímil é que consiste num galicismo derivado da palavra estorie que, por sua vez, terá origem no baixo-latim popular storia que era a forma como os populares pronunciavam e escreviam a palavra erudita historia - da qual deriva a nossa homófona palavra história. A palavra inglesa story tem a mesma origem e aparece documentada em escritos do final do século XII - mas, lá está, tanto num caso como no outro, estamos diante de palavras que, provavelmente, já circulariam oralmente há mais tempo. Resumindo: não é uma palavra incorrecta, mas é grosseira. A forma adequada é, claro, história.

Contudo, neste tempo relativista em que vivemos, no qual quase toda a gente já esqueceu como se fala e como se escreve, é chique escrever estória, principalmente na nossa famélica comunicação social. Enfim, é mais um desvio, daqueles que entram no nosso léxico; às vezes pela mão de quem tinha obrigação de saber o significado e a origem das palavras. Querem escrever estória? Escrevam. Mas é "à labrego", como se costuma dizer.»

(Uma adenda: acrescento que nenhum dicionário que tenho em casa [e tenho muitos - como, por exemplo, o de Almeida Costa e Sampaio e Melo, o de Eduardo Pinheiro, o de Cândido de Figueiredo, todos os de José Pedro Machado] lista a palavra estória. Acrescento ainda que a criação literária deve ser livre, como é evidente: mal estaríamos se não nos fosse permitido usar uma palavra só porque ela não consta em nenhum dicionário ou até que não nos fosse permitido inventar neologismos. A minha resposta consiste somente num esclarecimento filológico e etimológico.)

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Sessão de autógrafos + Algumas novidades

«Será que a sabedoria aparece sobre a Terra,
que nem um corvo inspirado pelo cheiro de carniça?»

O fim do ano aproxima-se e a conclusão do meu novo livro também: vou iniciar a escrita do último capítulo. Mais à frente, revelarei pormenores -- para já, apenas asseguro que consistirá numa viagem ao lado negro, mas em registo de não-ficção. Dou-vos uma pista: a citação de Nietzsche que acompanha o retrato de São Onofre reproduzido acima é uma das suas epígrafes de abertura. Será publicado durante o primeiro semestre de 2012 pelas edições Saída de Emergência.

Por outro lado, também tenho em mãos a tradução de um clássico da literatura fantástica: Something Wicked This Way Comes, de Ray Bradbury, que também será publicado em 2012 pelas edições Saída de Emergência.

O meu primeiro livro infantil, O Homem Corvo, ilustrado por Ana Bossa e Nuno Bouça, também irá ser publicado em 2012 pelas edições Saída de Emergência.

Entretanto, na próxima quinta-feira, dia 22, irei estar na loja FNAC do Chiado para uma sessão de autógrafos, entre as 18H30 e as 19H30, e trocar umas palavras com os leitores. Marquem nas vossas agendas.

(Imagem: Santo Onofre, Francisco Collantes. Séc. XVII.)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

"Five Variants of Dives and Lazarus"

Gosto muito das composições de Ralph Vaughan Williams (1872-1958) - e esta epopeia Five Variants of Dives and Lazarus (1939) é extraordinariamente épica. Talvez um pouco anacrónica nestes tempos "pequenos" em que vivemos: pois se no "grande" cabe o "pequeno", o contrário já não se verifica, infelizmente. De qualquer das formas, são dez minutos soberbos: pura Arte.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Votos para 2012


O ano de 2011 já se roja até à região antárctica do calendário para morrer, qual floco de cotão empurrado por baixo da porta, mas será 2012 o annus horribilis profetizado tanto pelos extintos Maias como pelas Sibilas contemporâneas do comentário público?

A verdade assustadora não é a de que vem aí o Apocalipse, nem a de que ele já chegou sem darmos por isso: é a de que nunca existiu outra coisa -- vivemos no eschaton todos os minutos de todos os dias. É por isso que não compreendo o pessimismo. Na verdade, também não compreendo o optimismo, porque ambos se apoiam na esperança: um na esperança de que será tudo mau e o outro na esperança de que será tudo bom. Sou ateu: não me norteio por virtudes teológicas. Oriento-me pela realidade e ela demonstra que o mundo só adquire significado se nós lho imprimirmos. Gravidade, electromagnetismo, força fraca e força forte: estes são os pilares do universo -- quatro, claro. Frias forças físicas. Mas existe uma quintessência radiante, muito mais transcendente: a nossa imaginação.

Todos os dias nos dizem que não podemos imaginar.
Que não podemos sonhar.
Dizem-nos tantas vezes que, às tantas, alguns indivíduos dão por si a acreditar nisso. É uma tragédia.

Na peça Cymbeline (1611) de William Shakespeare, a deleitosa Imogen é o epítome da beleza e da generosidade -- ela é tão celeste que é quase exosférica. Mesmo assim, o marido, Posthumus, não parece satisfeito e aceita a aposta que Iachimo propõe, de que é capaz de seduzir-lhe a mulher. É claro que Imogen, puríssima, é imune a essas manivérsias, mas Iachimo é engenhoso o suficiente para lhe entrar no quarto enquanto ela dorme, semi-nua, e descobrir o sinal que têm num seio. Quando descreve o sinal a Posthumus, este acredita que a mulher deixou-se corromper por Iachimo e ordena a um criado que a mate.

Nós não podemos ser os Posthumus das nossas Imogens. Das nossas imaginações.

É natural que, às vezes, nos sintamos inseguros, como Posthumus, diante da imensa grandeza, da imensurável nobreza da imaginação, e achemos que não merecemos tão refinado ouro. Nos nossos momentos mais negros até sentimos vergonha daquilo que temos de melhor -- e deixamos que os Iachimos da vida, os humanóides que lucram com a miséria e com o desespero, nos enxovalhem as mentes. Nesses casos, os cornos nas nossas testas não são os do adultério, que, como se viu, nunca aconteceu: são os das bestas muares; daquelas que se deixam encaminhar pelos demagogos, venham eles de onde vierem.
São sempre homens inferiores.
A razão pela qual se dedicam a apagar as chamas da imaginação é porque sabem que só elas podem mudar o mundo. A austeridade não mudará o mundo. Comprar produtos por um euro para vendê-los por dois não mudará o mundo. Só a Arte pode mudar o mundo, porque só ela nos mostra que é possível. E é possível: todos os mais progressivos e luminosos períodos da história foram tempos de profundas mudanças culturais, científicas e artísticas. Só a cultura pode mudar o mundo.

Por conseguinte, os meus votos para 2012 são os seguintes: sejam imaginativos, sejam criativos, sejam mais inteligentes, nobres e generosos do que foram este ano. Leiam mais livros, visitem mais museus, ouçam mais música, vejam mais beleza. Não acreditem quando vos disserem que imaginar não é possível, porque não é verdade.
É uma mentira descarada: na peça, ninguém foi capaz de matar Imogen. Ela sobreviveu.

Ela vive. Ela vive.

(Imagem: Imogen, Wilhelm Ferdinand Souchon. 1872.)

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Aforismo de tempo de crise


Aforismo de tempo de crise: um português desanimado olha cabisbaixo para os seus pés; um português confiante olha cabisbaixo para os pés de outra pessoa.

(Imagem: Pés, Vincent Van Gogh. 1887.)

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Exorcismo em Sintra

Estreia do novo vídeo de Ava Inferi, para a música "The Living End" do álbum Onyx (2011), realizado por Costin Chioreanu. Filmado em Sintra, no mítico Lawrence's Hotel, é uma visão atmosférica e fantasmagórica com um exorcismo espírita realizado no célebre quarto onde se hospedou no século XIX o escritor inglês George Gordon Byron.
Foi um prazer enorme participar nesta gravação, interpretando o exorcista que, nesse quarto, expurga os espíritos do hotel.


segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Sobre flexões nominais


O escritor norte-americano David Foster Wallace escreveu o seguinte no ensaio "E Unibus Pluram", contido no livro A Supposedly Fun Thing I’ll Never Do Again (1997):

«I'm not saying that television is vulgar and dumb because the people who compose the Audience are vulgar and dumb. Television is the way it is simply because people tend to be extremely similar in their vulgar and prurient and dumb interests and wildly different in their refined and aesthetic and noble interests.»

Na maioria das vezes, os programas televisivos difundem uma versão desidiosa da língua; como flocos liofilizados, ela é servida em porções desenergizadas às quais a falta de tempo e a falta de informação impede que se junte água - uma infra-linguagem indicada para empregar nos rodapés rolantes dos noticiários ou nos palimpsestos contemporâneos da internet, mas demasiado inexacta e inculta para veicular conhecimentos. O lugar-comum da televisão como ama-seca dos espectadores volta a soar acertado quando se pensa sobre a linguagem televisiva como sendo análoga aos arrulhos usados para acalmar crianças - e talvez mais do que em qualquer outra altura, ela arrulhe mais alto no período natalício.

Alguns dos erros mais frequentes que se ouvem na televisão são erros no uso das regras de flexão, que se divide em nominal e verbal. À primeira cabe, entre outras coisas, o tratamento do género e do número dos nomes e dos adjectivos. O género pode ser masculino ou feminino e o número pode ser singular ou plural. Existem línguas, como as da família ugro-finlandesa (finlandês, estónio, húngaro) que se caracterizam pela ausência de género, ou seja o mesmo pronome é usado para designar tanto o género masculino como o feminino (politicamente correcto, não?), mas no caso do português existem regras específicas para o uso do género e do número. No último caso, os erros mais vulgares ocorrem na escrita de palavras compostas ou compostos (nem sempre ligados por hífen).

Por exemplo, nesta altura do ano ouve-se dezenas de vezes "pais natal", mas o plural de Pai Natal é pais natais, porque é um composto formado por um nome e um adjectivo. O mesmo acontece com o plural bolos-reis do composto bolo-rei, formado por dois nomes. Quando o composto é formado por dois adjectivos, ambos se usam no plural.
Nos compostos formados por um verbo e um nome, só o nome muda para plural. Todavia, nos casos em que existe uma preposição entre dois ou mais elementos (são os chamados compostos preposicionais) só o primeiro adquire a forma de plural: é por isso que se diz pães-de-ló e não pão-de-lós ou pães-de-lós (muito menos "pãos-de-ló").

A dada altura, Foster Wallace também escreve:

«Television, from the surface on down, is about desire.
Fictionally speaking, desire is the sugar in human food.»

Qualquer biólogo sério vos poderá esclarecer que estamos programados para procurar alimentos açucarados e que é ingrato lutar contra essa tendência congénita. É por isso que o Natal é particularmente periculosu: por culpa dos tradicionais doces e pontapés no português.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Portas brancas


As Portas Brancas
(1905) do pintor dinamarquês Vilhelm Hammershoi (1864-1916), um dos meus artistas preferidos. Os quadros de Hammershoi são esmagadores. Neles, inversamente ao que possa parecer, não há lugar para a minimidade, nem para elipses: a solidão vocifera e predomina em tudo. Aqui, sim, mais do que em Munch, se grita de modo ensurdecedor.


Aceita-se o truísmo de que vivemos na era da imagem, mas, na verdade, como lhe damos pouca importância. Valorizamos as imagens em movimento de algum cinema e da televisão, mas o poder que operam sobre nós é somente um poder orgásmico, reduzido no tempo e na topografia. A apreensão epifânica de um verdadeiro significado (de natureza variável, conforme cada indivíduo) pertencerá, ainda, ao domínio da imagem parada, como a da pintura e da fotografia. Observar um quadro, como este de Hammershoi -- que é quase toreumatográfico --, é viajar para dentro dele, numa constelação fecundativa. Precisamos, talvez, nesta era das imagens, de redescobrir o valor delas.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Novos monstros


Hoje sabemos quais são as formas que os monstros afigurados pela Razão podem assumir, mas ainda não sabemos em que feitios se manifestarão os monstros concebidos pela Emoção.

(Quadro: As Quatro Divisões, Vilhelm Hammershoi. 1914.)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Novo vídeo de Ava Inferi estreia a 13 de Dezembro

O novo vídeo da banda portuguesa de gothic metal Ava Inferi, para a música "The Living End" (do álbum Onyx, de 2011) estreia mundialmente no próximo dia 13 de Dezembro. Realizado por Costin Chioreanu, consiste numa curta-metragem atmosférica e artística. Com espíritos inquietos e um exorcista interpretado por mim.

Anonymous

Começando com um prólogo teatral, passado nos nossos dias, com o actor inglês Derek Jacobi sozinho no palco, à guisa de Grilo Falante, enunciando ao público as razões pelas quais o dramaturgo inglês William Shakespeare não pôde ter sido o verdadeiro autor dos seus trabalhos, o filme Anonymous de Roland Emmerich é desonesto desde o início. Na verdade, o filme, com mais de duas horas de duração, mais parece um trailer a posteriori, apenas realizado para justificar a projecção do prólogo e do epílogo de Jacobi. De outra forma, qual é a justificação desses segmentos numa obra cinematográfica de ficção? A única justificação possível é a de que servem unicamente para provocar a opinião do público e granjear publicidade para o filme: adivinha-se que quanto mais polémico for o discurso, mais espectadores o filme terá e, nesse sentido de estratégia de mercearia de bairro, é um truque tão natural quanto outro qualquer. Porém, não deixa de ser desonesto em virtude disso: é uma estratégia que não deixa o filme respirar, nem oferece espaço ao espectador para retirar da história as suas próprias conclusões. Anonymous não é, pois, diferente de qualquer panfleto de propaganda eleitoral: o filme escolheu o seu candidato para autor das obras de Shakespeare, na figura de Edward de Vere, 17º conde de Oxford, e tudo faz para que os espectadores votem nele. Ora, eu não voto.

Enquanto filme, no mínimo enquanto espectáculo, Anonymous tem alguns méritos -- a cenografia, guarda-roupa e fotografia são de qualidade, assim como o trabalho superlativo da maioria dos actores (em principal Rhys Ifans como o mirífico Edward de Vere e Edward Hogg como o gebo Robert Cecil) --, mas não são suficientes para ofuscar a amargura de um argumento desastrado. O problema de Anonymous é que tem tudo para ser um filme interessante, mas recusa-se a ser um filme, de todo, apresentando-se como um panfleto de propaganda eleitoral, como já referi. No final do tempo de antena, depois de mostrada a arenga da praxe, pejada de intrigas palacianas, à la "Código da Vinci" quinhentista, e alguns complexos de Édipo, lá aparece Jacobi novamente, no seu melhor como porta-voz de campanha, a resumir com paternalismo as razões pelas quais se deve votar no candidato apresentado, não vá o espectador enganar-se e ir para casa sem a cartilha bem aprendida. Dá sempre jeito ter um senhor de cabelos brancos e com aspecto de cavalheiro respeitável para papaguear umas barbaridades, quando o objectivo é que elas pareçam credíveis.

Sobre o filme, pouco ou nada mais há que comentar, porque, com efeito, o filme verdadeiro, aquele que, de facto, o realizador está ansioso por nos mostrar, é composto pelo prólogo e pelo epílogo. E esse transmite algumas mensagens perigosas, mas que, enfim, devem estar sintonizadas com o tempo em que vivemos, no qual ter talento não interessa nada. A tónica colocada nas origens iletradas de Shakespeare, insistindo que ele não poderia ter escrito os seus trabalhos porque o pai não sabia ler, e porque as suas filhas também não, parece retirado a papel-químico dos discursos de Marcelo Caetano, delfim de António de Oliveira Salazar, que defendia a ideia de que a inteligência e o talento eram faculdades que apenas se refinavam «no seio de uma família» (à laia de lamarckismo revisto pelo Estado Novo). Ou seja: na visão de Emmerich, Shakespeare não tinha nada de ser escritor e deveria ter sido fabricante de luvas como o pai; tal como, na lógica de Caetano, ao filho de um sapateiro só era permitido ser sapateiro. Anonymous tem, como se vê, a finura do feitor de castas: a cada um, de acordo com o seu berço.
Mas há mais: numa observação totalmente contemporânea sobre a vida de indivíduos que já morreram há mais de três séculos, Jacobi ainda refere que Shakespeare não poderia ter escrito os seus trabalhos porque só tinha o ensino primário (no original, grammar school). É um argumento tão anacrónico que nem sequer merece uma refutação séria. Prefiro deixar o esclarecimento de que a maioria dos indivíduos da sociedade quinhentista isabelina não teriam muitos anos de estudo, nem sequer os nobres, dos quais se resgatou a personagem Edward de Vere: a função da nobreza não era saber ler nem escrever, mas saber guerrear. Para ler e filosofar havia o clero e para governar havia o rei (ou a rainha). Como é que, por um lado, Anonymous faz questão de ostentar o desprezo cabal dos nobres pela literatura (não esquecer que é esse desprezo que está na base da teoria da conspiração que serve de esqueleto ao filme) e, por outro, defender que um campónio, que tinha um pai analfabeto, ainda por cima, também seria incapaz de escrever? Então, quem é que escrevia naquele país? É verdadeiramente espantoso como uma sociedade tão tacanha como a retratada no filme foi capaz de servir de parteira a um dramaturgo tão genial, viesse ele de que classe social viesse. É um mundo muito feio, o de Emmerich e John Orloff (argumentista).

Anacrónico, preconceituoso e panfletário podiam ser boas designações para Anonymous, mas não são. Não são, porque Anonymous não existe enquanto filme: só existe enquanto tempo de antena de campanha eleitoral, na projecção do prólogo e do epílogo. As duas horas e dez minutos que estão no meio são apenas a música de baile que os mestres-de-picadeiro escolheram para dourar a pílula.
Vale a pena ver este teaser em que Emmerich expõe as suas dez razões para que Shakespeare não possa ter escrito os seus trabalhos -- em síntese, é o discurso de Jacobi em Anonymous, mas com a desvantagem de ser Emmerich a soliloquar, em vez de ser um actor profissional: http://www.imdb.com/video/imdb/vi1157013017

Mesmo assim, no que diz respeito a candidatos alternativos para a autoria das obras de Shakespeare, Edward de Vere, deixa um pouco a desejar, como se pode ler em Brief Lives, do cronista seiscentista John Aubrey. De Vere cometeu uma falha imperdoável junto da rainha Elizabeth I, quando a ela foi apresentado: o conde estava tão nervoso por conhecê-la que, ao realizar os salamaleques da praxe, descuidou-se em alto e bom som. O episódio foi um escândalo e Edward de Vere andou exilado cerca de sete anos, sem sequer olhar na direcção de Inglaterra. Ao retornar, foi ter com Elizabeth I, como era mandatório, e ela disse-lhe: «Caro Senhor, já me esqueci do seu peido [sic]». A ser verídica a tese oxfordiana, quem sabe se sem esse tirocínio forçado pela Europa, De Vere não teria sido capaz de inspirar-se na alta cultura florentina para escrever. Nesse caso, devemos agradecer não à providência, mas à flatulência, uma das maiores obras literárias mundiais.

No fim do epílogo de Anonymous, depois de Jacobi ter cumprido o papel de advogado do Diabo e desaparecer atrás da cortina, vemos os espectadores esclarecidos a levantarem-se dos seus lugares. A caminho das urnas, portanto, prontos a assinarem de cruz como o pai de Shakespeare.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Crítica na revista Os Meus Livros a "O Pequeno Deus Cego"

O novo trabalho escrito por David Soares, com desenhos de Pedro Serpa, O Pequeno Deus Cego (Kingpin Books), assenta numa metafórica e fliosófica abordagem, para criar uma história de crime e castigo.
Aquela a quem chamam Papa-Moscas, uma menina sem olhos que afinal não nasceu menina («a culpa é de Wang, o castrador», anuncia-lhe o Velho, quando com ela se cruza pela primeira vez), serve de sacrifício às intenções da mãe. Estamos numa China muito antiga...
Até que acaba por conhecer Wang, monstro alocado numa caverna. Não o teme porque não vê. Não o respeita porque não o teme. Acaba por ser incómodo para tão terrível criatura, pouco habituada a ser menosprezada: «conhecer-te foi confuso e assustador e eu não gosto do modo como me estou a sentir».
A ira de um monstro encurralado nas suas próprias dúvidas («E se tu fores Deus, caganita? Um deus cego que criou o universo e encolheu os ombros? Isso não faz de ti o maior dos irresponsáveis? O maior dos criminosos?») é tão terrível como a de um que sabe porque é mau. Ou mais ainda.
O retorno a quem semeou maldade acaba por selar esta história (com habituais componentes de David Soares, incluíndo a presença do sexo), traçada de forma clara, onde a violência (nas imagens com a Mãe) e o simbolismo (nos diálogos com o Velho, ou mesmo com o monstro) se conjugam de forma eficaz.
(João Morales, Os Meus Livros. Dezembro, 2011)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Entrevista sobre o 'weblog' Mort Safe


Entrevista no site Ave Rara com Gisela Monteiro sobre o seu weblog Mort Safe e sobre tafofilia.

Visitem o Mort Safe (taphophilia.blogspot.com): um weblog rigoroso e pertinente, cheio de riquíssimas informações históricas e culturais sobre o universo cemiterial, assim como ilustrado por belas fotografias.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Morte de Fernando Pessoa


Recordando Fernando Pessoa, no dia da sua morte, com um excerto do meu romance A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência, 2007). Neste trecho, Pessoa morre.
Às vezes, é a única forma de continuar a Viver.

«1935

Tudo o que é humano é divino, pensou Pessoa, sentindo a morte a entrar-lhe no quarto do Hospital de São Luís dos Franceses naquele final de tarde; fresca, salgada, de pele torrada pelo Sol como Talassa, a Mãe d’Água primordial, ela olhou-o com ternura e deixou-se ficar serena – sereia – aos pés da cama: ainda não era a Hora. A morte, reflectiu, só mete medo se a olharmos com olhos de medo. Estou calmo e ela é linda. Era a primeira visita do dia, desde a do cunhado na manhã anterior; a irmã, também acamada, com uma perna fracturada, não tinha podido vir.
Porque motivo se sentia tão sossegado na presença da morte? Ia morrer sem ter publicado o grande livro que intentara dar à estampa, até ao final do Verão: faleceria órfão de letras, avarento com uma arca cheia de manuscritos erráticos, amontoados como roupas usadas; alguns dentro de envelopes, amarrados às dezenas com cordéis. Tossiu e escarrou, para dentro da boca, uma bola de expectoração que lhe soube a bílis; engoliu-a.
Guardava na alma a imagem ideal dessa Grande Obra que nunca publicara e achava-se como um desses mal-casados que andam infelizes pelo mundo; que guardam as imagens subtis das mulheres e homens desejados – imagens sublimes que não se realizaram. Até era um pouco maçadora aquela tragédia toda de ir morrer.
Calculou que seria indicado lembrar pessoas e coisas que conhecera, para cunhar a morte com um carácter mais ortodoxo. Havia a mãezinha e o pai, este já demasiado vago para ter rosto. Os irmãos, o tio Roza que também havia sido poeta, a Teca, o Chico e os meninos. A avó Dionísia, mais louca que o Ângelo de Lima… Coitado do Lima!... Que grupo de bons malandros tinha sido aquele do Orpheu: como estava tão diferente do Pessoa desses anos. Agora sabia como era fácil um Messias roubar a liberdade do seu povo: ia fazer no dia seguinte um mês desde que decidira não publicar mais nada em Portugal como protesto pela censura coagida pelo Estado Novo – todas as obras censuradas são ridículas!
Certamente que o Ferro o tinha ajudado a ganhar o prémio da Segunda Categoria daquele maldito concurso literário com a Mensagem, porque depois da carta que publicara no jornal a favor da Maçonaria tornara público o rompimento com o salazarismo. Sim, agora pensava de um modo muito diferente do Pessoa que escrevera o Interregno
A Mensagem!...
O conjunto de poemas que baptizara de Portugal: mudara de título por causa dele!
Ele! O mago diabólico.
Ainda era vivo, mas os jornais já não falavam nele.
Pessoa costumava ir ao Café da Arcada para se encontrar com Ferreira Gomes e beber aguardente; às vezes, puxava esse assunto apenas para ver o rosto ingénuo do amigo derreter numa careta desconsolada. O Cirilof, a quem finalmente prefaciara a tão adiada edição de Alma Errante com um pequeno ensaio sobre a ordem rosicrúcia, cortara o cabelo e a barba: quando Pessoa o viu assim pela primeira vez pensou que se tinha enganado na porta. O livreiro passava os dias a falar de política e continuava a achar que o António Ribeiro iria transformá-lo numa estrela de cinema. A relação já não era a mesma e Pessoa, voltando sozinho para Campo de Ourique, com as mãos nos bolsos onde trazia – sempre – o anel de prata deformado, só queria chegar depressa a casa para se sentar a escrever.
Os novos escritores e artistas que ia conhecendo nos cafés e no Abel olhavam-no como um antepassado de estimação: o velhinho que se ria alto, cuja mão tremia ao agarrar a caneta e o copo; uma vez, enquanto conversava com o Almada, até se escondera debaixo da mesa durante uma trovoada. Não era culpa deles se não o levavam a sério, mas que podia fazer? Não gostava daquele mundo, daquela cidade, daquela gente de sorriso pateta que via nas ruas: se achassem que era um Puro Tolo, tanto melhor. O que é que lhes preenchia as cabeças? Mais ninguém se interessava por magia. Ninguém parecia ter imaginação naqueles dias em que nada podia estar acima da Nação. Nem sequer o Homem.
Era por essa razão que a simples menção de Crowley numa conversa murchava as atenções dos ouvintes. Ninguém queria falar de Crowley, ninguém queria falar sobre a Besta: ninguém queria falar sobre aquele que não substituíra os sonhos por comodidades e subira mais alto que todos; daquele que metera medo a toda a gente com o riso satânico – o riso que, bem vistas as coisas, só metia medo àqueles que tinham pavor de viver. Sim, ninguém queria falar sobre ele, porque, ao fazê-lo, reconheciam que não tinham sido bons o suficiente, corajosos o suficiente, loucos o suficiente. Mas Pessoa lembrava-se! E não o esquecera.

Considerei, realmente, a chegada da sua poesia como uma verdadeira MENSAGEM, que gostaria de explicar pessoalmente.

Uma verdadeira Mensagem!
Crowley mostrara-lhe, sem dar conta, como ele gostaria que a sua poesia fosse lembrada no futuro. Lembrou-se do mago, lembrou-se do amigo.

Senhor Pessoa. Que raio de ideia foi a sua
de me mandar o nevoeiro lá para cima?

Sorriu, e a morte sorriu também. Compreendeu porque é que ia morrer sossegado: tinha vivido uma vida mágica e quem vive uma vida mágica sabe que não há morte, apenas um alçapão por onde o corpo desaparece para ir para outro lugar; como no palco de um ilusionista.
Sentiu curiosidade em saber como a sua obra literária seria lida após a morte; se, com efeito, conseguiria deixar um legado nas letras, na cultura do Portugal que tanto amava. Olhou para a mesa-de-cabeceira e viu o bloco de apontamentos ao lado de uma das velas de Abramelin que Crowley lhe oferecera antes de ir para a Alemanha: uma das velas usadas no ritual realizado na Boca do Inferno.
Agarrou o bloco e sentou-se na cama, encostado à almofada. Sentiu-se maldisposto e com vontade de vomitar; os braços tremiam-lhe e apenas com muito esforço conseguiu manter-se equilibrado a olhar para o papel. Aproximou o bico do lápis da folha e pensou na frase que iria escrever para a transformar em sigilo como Crowley lhe havia ensinado. A cama rangeu, ameaçando partir-se; um pássaro que chilreou no pátio demonstrou-lhe que o mundo continuava a girar sem lhe dar importância.
Que frase iria escrever?
Lembrou-se de perguntar: O que é que o Amanhã me irá trazer? Encostou o lápis à folha e, agarrando-o com força, preparou-se para redigir a frase. A mão tremeu-lhe; a visão desfocou-se. Não tinha força e interrompeu a acção, fitando os pés da cama e convergindo o olhar em algo invisível. Compreendeu que, no fundo, ele recusava-se a querer saber o futuro.
E se viesse a saber que a sua obra cairia no esquecimento, que tudo aquilo que escrevera fora em vão? Seria demasiado cruel descobrir que todos os sacrifícios que fizera para se dedicar à escrita haviam sido nulos e que nada perduraria. Não precisava de saber nem o bom nem o mau: ia morrer, era uma parvoíce; um último resquício de presunção, de egomania artística. A obra teria de vencer sozinha.
Sacudiu os ombros e gemeu: era uma pergunta pateta, de qualquer das formas. Limitou-se a escrever, em inglês:

Eu não sei o que é que o Amanhã me irá trazer.

Pousou o bloco na mesa-de-cabeceira e voltou a deitar-se. A morte, entretanto, saíra do quarto. Ouviu um eléctrico passar ao longe, talvez no topo da Rua D. Pedro V; já haviam poucos, substituídos por autocarros. O seu mundo morreria com ele. Fechou os olhos, ensonado, mas não adormeceu; não valia a pena porque a enfermeira não tardaria a dar-lhe o jantar.
No dia seguinte, mais ou menos à mesma hora, a morte regressou. Pessoa sentiu-a como um véu a cair-lhe sobre os olhos e, para ter a certeza que era a mesma dama do dia anterior, pediu à enfermeira:
‘Dá-me os óculos.’
Colocou-os e olhou para o lado. Lá estava ela, radiante. Abriu os lábios gretados e tentou sorrir; uma dormência repentina afectou-o. Virou-se para o outro lado e viu a enfermeira sair depressa do quarto. O véu que tinha sobre os olhos tornou-se opaco. Depois negro. Os sons afunilaram-se num zumbido.
Um táxi passou, barulhento, e o ruído do motor foi abafado pelo vidro da janela. Pessoa não o ouviu.
A cama chiou, baixinho, com o estertor que agitou o corpo do poeta.
Quando o médico Jaime Neves, seu primo, e o colega Alberto Carvalho, entraram no quarto encontraram Pessoa sem vida.
O corpo parecia artificial: mais pequeno.
Na mesa-de-cabeceira, o relógio de Pessoa continuava a trabalhar. Morreu tão cedo!..., disse Jaime Neves, mordendo o lábio.
Mas Pessoa não morrera – Não há Morte! –, participara num truque de Magia!
Passara por um alçapão

domingo, 27 de novembro de 2011

Adiamento da apresentação de "O Pequeno Deus Cego"


Caros leitores: a apresentação marcada para o próximo dia 30, no fórum da loja FNAC do Chiado, do álbum de banda desenhada O Pequeno Deus Cego (Kingpin Books) encontra-se adiada, por motivo de saúde do desenhador Pedro Serpa. Quando ele recuperar, logo se marcará uma nova data, que será, nessa altura, comunicada.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Etimologias grevistas

Porque a palavra greve será, provavelmente, a mais ouvida neste dia, aqui fica um esclarecimento sobre a sua etimologia, recuperado de um verbete escrito a propósito do Dia do Trabalhador.

Consiste num contributo para a discussão sobre intervenção pública, neste dia de greve.
Somos animais de palavra: não no sentido moral, já anacrónico hoje em dia, infelizmente (esse sentido é só para quem ainda tem uma coisa chamada coluna vertebral), mas no modo instrumental da mesma, empregue em comunicação. Hoje, conhecer as palavras e o seu significado é, talvez mais do que em outras alturas, uma faculdade essencial para ser-se livre, inteligente e interventivo num mundo cada vez mais sintético, nanográfico e monossémico.

Costuma dizer-se que o étimo da palavra trabalho é o nome latino tripaliu: um popular instrumento de punição e tortura, que consistia num aparelho muito simples, formado pelo cruzamento de três estacas (duas montadas em feitio de cruz de Santo André e uma terceira atravessando na vertical a intersecção das outras). Os desgraçados amarrados ao tripaliu morriam incinerados. Por conseguinte, várias fontes são unânimes em explicar que o verbo trabalhar deriva de tripaliare, que significava pôr no tripaliu ou torturar no tripaliu. Eu tenho dúvidas que esta etimologia seja a correcta, mas talvez exista um modo de me reconciliar com ela: é que também se chamava tripaliu a um vulgaríssimo instrumento de trabalho rural, muito parecido com uma forquilha, que servia para atirar a colheita ao vento, de modo a separar as impurezas dos cereais. Ora, sendo que o trabalho rural é antiquíssimo e que o tripaliu do camponês foi um dos seus primeiros instrumentos, não me choca nada que ele tenha dado o nome a um posterior instrumento de tortura, também feito com três paus. Ou seja: talvez trabalho tenha mesmo origem no étimo tripaliu, mas por via do instrumento rural e não pela do de tortura.

À luz disto, é ainda curioso lembrar que as possíveis origens do Dia Internacional do Trabalhador talvez se encontrem no chamado Hayfair Massacre (Massacre do Mercado do Feno), ocorrido a 4 de Maio de 1886, em Chicago: uma greve acabou da pior forma possível, quando uma bomba lançada por um indivíduo anónimo teve como efeito um contra-ataque violento por parte da polícia.

Quanto à nossa palavra greve, ela tem origem na francesa grève, que significa areia ou gravilha. Até ao século XVIII, a famosa Place de l'Hôtel de Ville, à beira do Sena, em Paris, chamava-se Place de Grève. Era neste local que os trabalhadores à jorna se reuniam para serem contratados pelos mestres-de-obras que precisavam de braços. No entanto, quando os trabalhadores ficavam descontentes ou não gostavam do trabalho para o qual tinham sido contratados, retornavam à praça e aí ficavam até que os empreiteiros lhes oferecessem melhores condições ou que aparecessem outros biscates. Com o passar dos anos, o acto de "ficar em Grève" (ou seja, na Praça de Grève) transformou-se em "fazer greve" e "estar de greve".

domingo, 20 de novembro de 2011

Apresentação na FNAC Chiado de "O Pequeno Deus Cego"

«Há que confiar na Providência. Ela olhará por nós.»

Em O Pequeno Deus Cego, escrito por mim e desenhado por Pedro Serpa. Uma edição da Kingpin Books: a apresentação no fórum da loja FNAC do Chiado é já no próximo dia 30, às 18H30. Apareçam.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Fórum Fantástico 2011


Começa hoje, na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, em Lisboa, o Fórum Fantástico 2011 (até domingo 20, inclusive). Com organização de Safaa Dib e Rogério Ribeiro, é a mais importante convenção portuguesa relacionada com a divulgação e promoção do Fantástico nas artes e a programação deste ano tem muitos motivos de interesse, como debates, apresentações e uma retrospectiva da obra do cineasta e escritor António de Macedo (que este ano editou o livro O Sangue e o Fogo pela editora Saída de Emergência). Curiosos, fãs e especialistas, o Fórum Fantástico faz-se com todos e aguarda por vós para mais uma edição de peso. O fabuloso cartaz é da autoria de Pedro Marques.

domingo, 13 de novembro de 2011

Apresentação na FNAC Chiado de "O Pequeno Deus Cego"

Um encontro imediato de 3º grau, no qual a carne desprende-se dos ossos.
Em O Pequeno Deus Cego (Kingpin Books), escrito por mim e desenhado por Pedro Serpa.
Apresentação do álbum no fórum da loja FNAC do Chiado (Lisboa), no próximo dia 30, às 18H30, com as presenças dos autores e do editor Mário Freitas.