A translucência do passado
Vivemos num período permeado por ficções,
principalmente televisivas e cinematográficas, mas, por mais engenhosas que
pareçam ou por mais lucrativas que provem ser, nenhuma define a nossa cultura
como os mitos da madrugada da humanidade enriqueceram o dia-a-dia dos nossos
antepassados; esses foram os tempos prévios ao perecimento das metanarrativas,
vaticinado por Jean-François Lyotard no livro A Condição Pós-Moderna, e, em prática, o mundo ainda era mágico,
com cada canto possuindo a sua feérica fauna. Aqui, nesta malha mundana que, a
cada século, vai crescendo mais um pouco a partir do Tejo translúcido, em jeito
de tinta espremida com preguiça sobre papel-cavalinho (o mais adequado do ponto
de vista alegórico, como irá ver-se), o mito teve configuração de zebro.
Sabe-se que foi essa a configuração, porque a
lenda é anterior à chegada dos burros à península, cortesia dos fenícios, que
trouxeram com eles os descendentes dóceis do asno selvagem da Núbia,
domesticado pelos egípcios por alturas de 4500 a.C. – no norte de Portugal, a
palavra núbio significa nublado: extremamente apropriada a esse
animal, presumivelmente extinto. Os zebros também se extinguiram, mas estes, da
história que se segue, continuam vivos, porque foram imaginados – mais do que
isso, foram notabilizados a ferros-quentes no espaço mitopoético da nossa
cultura ocidental, através de apostilas de autores tão mal-lembrados, mas
insignes, quanto Varrão Reatino que, no século I a.C., foi o primeiro a glosar
em livro a lenda das éguas olisiponenses a serem fecundadas pelo vento Favónio.
Em Sobre a Agricultura, pode ler-se: «na
Lusitânia, junto ao Oceano, naquela região em que se encontra o oppidum de Olisipo, no monte Tagro,
algumas éguas concebem do vento, em certa altura, como também acontece aqui com
as galinhas (…) Mas os potros que nascem dessas éguas não vivem mais do que
três anos». Reconhece-se com facilidade que o Favónio não é outro senão o
Zéfiro, esse vento quente, oriundo do ocidente, associado pelos gregos ao
protótipo da prosperidade e que figurava como pai dos potros nas primeiras
versões de uma lenda raptada pelos romanos olisiponenses, como patenteia o
fundo da garrafa de vidro, encontrado em escavações arqueológicas na Casa dos
Bicos e datado da viragem do século I para o II, que mostra um zoomorfo em
movimento, muitíssimo parecido com um cavalo. Esta é a marca d’água do
vidraceiro: um símbolo que identifica instantaneamente a cidade com o seu
próprio mito e comunica confiança ao consumidor. Cronistas clássicos como
Columela ou Plínio-o-Velho, mas também escribas posteriores, como Virgílio e
até Agostinho de Hipona, mantiveram viva a história das éguas “lisboetas” que
engravidavam do vento e pariam potros velozes, vencidos também velozmente pela
morte; às vezes, trocando a localidade de Olisipo por outras bandas, mas
preservando aquilo que é fundamental na fábula.
Exagero ao promover este vínculo? Então que outro
encadeará o emblema no fundo da garrafa de vidro à trademark de olaria no suporte púnico de ânfora que pode
observar-se no núcleo arqueológico da Rua dos Correeiros, atribuído aos séculos
IV a.C. e III a.C., e que mostra dois selos com cavalos desenhados?
São demasiadas cabeças a pensar da mesma forma.
Tem de existir uma ligação mais profunda que a
despida coincidência.
Olisipo, terra de equídeos eólicos, irradiados por
todo o império pela imaginação de oleiros e vidreiros – que outra marca, sem
ser tão antiga e tão apetecível quanto esta, teria idêntica credibilidade?
Por um vidro opacificado
Sem chegar aos dez centímetros de diâmetro, o
escaqueirado fundo de vidro com o cavalo em proeminência, pertenceu a uma
garrafa prismática; no sentido geométrico e não no cromático, porque este naco
de vidro não reflecte sete cores, mas apenas uma, o verde: uma variedade de
verde mais sulfúrica, aliás, que a plúmbica pigmentação do verde que dá cor às
bojudas garrafas inglesas de vidro, encontradas no mesmo reservatório de
relíquias transtemporais, mas datadas do início do século XVIII. Sabemos que
estas conservavam licor para ser combinado com chocolate quente – a bebida
preferida de D. João V, como assegura a miniatura pintada sobre marfim por
Castrioto, em 1720, que mostra o seu meio-irmão D. Miguel a servir-lhe uma
chávena –, mas qual o líquido que a garrafa romana teria preservado? Licor para
ser misturado com qualquer bebida tão exótica quanto o chocolate? Defrutum para adicionar ao vinho? Talvez
garum, por que não? Ou água? É um
segredo que não se sabe, mas o mesmo objecto deixa desencobrir outros sigilos.
Há poucas linhas, quando apliquei os adjectivos
“sulfúrica” e “plúmbica” referi-me à acção dos corantes empregados no manufacto
vidreiro: na sua História Natural,
Plínio-o-Velho descreve a produção do famoso colorante verdigris, colhido da corrupção do cobre, mas a coloração da nossa
garrafa romana deriva de misturar-se enxofre ao carbonato de sódio; por outro
lado, a cor “caribenha” das supracitadas garrafas britânicas delata um
compromisso entre o cobre e o chumbo, metais que, como já vimos, nos colocaram
na rota dos fenícios. Hoje, através de programas digitais de ilustração e de
manipulação de imagens, ou ainda com os velhos lápis de cores, todos somos
capazes de pintar o mundo a gosto, mas, em meados do século XV, quando D.
Afonso V criou a lei que proibia os estrangeiros de virem às nossas praias
algarvias procurar a planta que, depois de queimada, facilitava a fusão do
vidro, as coisas não eram tão simples. Que planta foi esta, cujas cinzas
continham crípticas propriedades concatenadoras?
Foi a chamada erva-maçaroca, rica em carbonato de
sódio, precisamente; e a proibição a que acabei de aludir, coincide com o
início do trabalho dos vidreiros no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na
Batalha, entre os quais os mestres Luís Alemão, Guilherme e Ambrósio. Mas
outras plantas poderão ter tido um papel importante a desempenhar nesta
indústria, no que concerne à coloração. Em 1445, este rei deu ao seu tio, o
Infante D. Henrique, o monopólio da indústria relacionada com a apanha e a
transformação do pastel: o oculto pastel-dos-tintureiros, cujo nome erudito é isatis tinctoria, planta de cujas folhas
maceradas se extrai um corante azul, empregado, em principal, na tinturaria
têxtil; como no caso dos famosos panos de Alcobaça, que Gil Vicente criticou,
na sua Farsa dos Almocreves, por
encolherem com a lavagem: «não tendo as terras do Papa, nem os tratos de Guiné,
antes vossa renda encurta como os panos de Alcobaça», queixa-se o Capelão sobre
o Fidalgo falido que lhe está em dívida. Em oposição, a apanha da (também cobiçada)
urzela – de apelido igual ao do pastel, mas chamada roccella –, líquen frequente nas fragas atlânticas dos litorais
açorianos e madeirenses, do qual se obtinha uma nobre tonalidade de castanho,
consistiu num ofício perigoso, com os apanhadores a serem descidos por cordas,
desde o alto dos penhascos, até aos paredões onde o líquen se encarrapitava –
topónimos como Rocha dos Dependurados e Malbusca, na ilha açoriana de Santa
Maria, denunciam as desgraças sofridas por estes proto-rappelistas.
Talvez o segredo etimológico do nome Açores esteja
também relacionado com a cor azul, porque nessas ínsulas nunca existiram
açores, mas ao longe, observadas a meio do Atlântico, as suas silhuetas ainda
hoje surgem aos navegantes e aos turistas num enfeitiçante recorte azurro: nome genovês para azul, língua dos prováveis descobridores
do arquipélago, ao serviço do nosso D. Afonso IV. Poderia o pastel e a urzela
terem sido usados como corantes para o vidro, como os dos vitrais que o mestre
Francisco Henriques pintou para o Mosteiro da Batalha e para a Igreja de São
Francisco de Évora (onde está o nosso mais famoso ossuário)? Não é uma hipótese
descartável, porque a própria designação vidro,
derivada da palavra em latim vitriu,
tem como origem, afinal de contas, o antigo nome romano para o pastel – e, de
facto, os primitivos vidros romanos são, predominantemente, azuis: da mesma cor
que os primevos vidros egipcíacos, também azuis, e cujo nome designa essa cor.
O nosso fundo verde de garrafa assinala o período em que o vidro romano começou
não só a adquirir uma paleta sortida, mas a transluzir-se.
No entanto, as janelas das casas de Olisipo nunca
tiveram vidraças, porque, apesar dos romanos conhecerem a cana de soprar,
invento sírio que veio possibilitar o fabrico de objectos muito mais refinados,
ainda não dominavam a capacidade de afeiçoar grandes pranchas de vidro; apenas
peças pequenas, como unguentários, lacrimatórios, copos e, claro, garrafas com
cavalos em relevo no fundo. As janelas de vidro romanas eram diminutas e foscas,
colocadas para efeito decorativo. As janelas de vidro em Lisboa foram uma
adição tardia: na Lisboa pré-terramoto de 1755, os gatunos ganhavam a vida
saltando sem esforço da janela de uma casa para a de outra, não só porque as
ruas eram muitíssimo estreitas, mas porque as janelas não tinham vidros; apenas
cortinas e, às vezes, nem sequer isso. De qualquer forma, o Sol não conseguiria
iluminar convenientemente esses aposentos, com vidros ou sem eles, porque o
acanhamento das vielas, associado aos numerosos balcões dos edifícios, já de
dois ou três andares, impediria a luz de preencher esses espaços. Se
viajássemos no tempo até à Lisboa medieval ou até à Lisboa barroca ficaríamos
surpreendidos ao descobrir o quão escuras eram: pensem nos centros históricos
de cidades como Toledo – ou Jerusalém. É intuitivo achar que os lisboetas
dessas épocas nunca consideraram que as suas ruas fossem abafadiças. De facto,
quando se pensa nas primeiras cidades, como Catal-Hüyük, datada de 9000 a.C.,
descobre-se que o delineamento enredado da Lisboa medieval consistiu num
grandioso progresso em relação ao desenho dessa urbe inaugural, porque esta,
simplesmente, não tinha ruas nenhumas: foi uma cidade-colmeia, na qual os
cidadãos entravam em casa por escadotes espalhados por múltiplos
telhados-pátios; a vida urbana era toda feita em interiores mal-iluminados por
estreitas janelas (sem vidros), abertas nos níveis mais altos das paredes.
(Entre vizinhos, as lutas por direitos de passagem ou por questiúnculas territoriais
seriam constantes, porque as ossadas encontradas nas escavações arqueológicas
apresentam inúmeras lesões cranianas; além de múltiplas fracturas provocadas
por quedas de degraus mais altos e de telhados.) A planta sufocante desta
cidade terá sido projectada como sendo uma estratégia de defesa contra
populações rivais, mas, independentemente da inexpugnabilidade, a total
ausência de ruas comprova que até elas – espaços públicos que tomamos como
garantidos – não deixaram, também, de serem aperfeiçoadas ao longo da história,
como qualquer outro objecto inventado pelo homem. E, com efeito, falando nisso,
vale a pena perguntar: quem inventou o vidro?
Magia à transparência
Os raros vidros formados em diferentes
circunstâncias pela Natureza já eram usados como lâminas ou como bric-à-brac pelos nossos fazedores de
bifaces e pelos nossos pré-históricos criadores de gado, mas quem – em que
altura – descobriu o segredo de fazer vidro? A ideia de que foi inventado por
acidente, ao revolver-se numa manhã o borralho de uma fogueira feita numa praia
na noite anterior não se sustenta, porque um fogo simples como esse nunca
atingiria as temperaturas necessárias e a resposta mais verosímil para desfazer
esta dúvida relacionar-se-á com a antiquíssima indústria vidreira egípcia, no
sentido em que o vidro poderá muito bem ser resultado de experiências
realizadas com sal e areia nos fornos dos primitivos alquimistas egípcios.
Para quem não está familiarizado com os universos
ditos esotéricos, esta hipótese poderá parecer bizarra, à primeira vista, mas a
alquimia nasceu no Egipto, como consequência do acumular de saberes técnicos
associados às artes de trabalhar materiais tão intrigantes quanto o ouro. Os mais antigos papiros referentes ao trabalho
alquímico, conservados na biblioteca da universidade da cidade holandesa de
Leiden e no museu universitário da cidade sueca de Uppsala, não contêm nenhuma
alusão a rituais “iniciáticos” de “escolas mistéricas”, nem sequer referências
ao “desenvolvimento espiritual dos adeptos”, mas, somente, pragmáticas e precisas
fórmulas para a falsificação de gemas, pérolas, ouro e prata, através de ligas
metálicas e de corantes. É perfeitamente plausível que, no decurso dessas
experimentações, testando temperaturas e ligas variadas, os alquimistas
egípcios tenham achado a receita de fazer vidro.
Outro enigma que o
relato do fundo de garrafa de vidro da Casa dos Bicos vem esclarecer é o da
desflorestação das matas de Lisboa. É que para fazer-se vidro era preciso
queimar grandes quantidades de lenha – dia e noite – e a indústria do vidro
conflituou com a do pão pelo açambarcar de combustível: ainda hoje, famintas,
as fornalhas são feras que nunca dormem e dominam-nas um apetite impaziguável.
Foi para contrariá-lo que, no final do século XV, D. João II (formidável
refreador de apetites) proibiu a instituição de mais usinas vidreiras, além da
já estabelecida em Côvo (no concelho de Oliveira de Azeméis); e, pouco depois,
foi nas Cortes de Lisboa de 1496 que se fez a lei que proibiu o corte de
árvores pelo tronco, para a indústria do vidro, ordenando que apenas se
decepassem os ramos, sob pena de dois vinténs por cada árvore danificada.
Apesar de tudo, em 1499, uma segunda vidraria foi fundada, desta feita em
Coina: fábrica que se tornou concorrente dos vidros do Côvo. Ao envelhecer do
século XVI, brotaram outras unidades vidreiras em Lisboa, como a do Forno do
Vidro e a do Beco dos Vidros (este topónimo ainda resiste num beco a norte da
Igreja de Santa Engrácia, o Panteão Nacional). Evidentemente, o problema da
desflorestação agravou-se – e com a desbastação da paisagem ribatejana,
proibiu-se a construção de vidrarias num raio de sete léguas em volta de
Lisboa. Foi nessa altura que a fábrica de Coina se transferiu para a Marinha
Grande, de maneira a beneficiar de um espantoso manadeiro de madeira: o Pinhal
de Leiria.
Em jeito de vento
catabático, a produção do vidro olisiponense mergulha numa fatia invisível de
cronologia histórica, desde os tempos da ocupação romana até meados da nossa
Idade Média; altura em que volta a ser documentada, como na lei formulada por
D. Afonso V – simplesmente, o vidro não parece ter sido importante para a
economia e a cultura desses séculos de suspensão da actividade vidreira. Porém,
não terá desaparecido e uma pista intrigante que nos chega, em relação a isso,
está contida no florilégio Cantigas de Santa Maria, compilado no século
XIII por Afonso X, o Sábio, rei de Castela.
A composição chamada Esta
é Como Santa Maria Evitou que o Filho de um Judeu, que o Deitara ao Forno, Não
Ardesse, conta-nos como «um judeu que sabia fabricar vidro» enfiou o
filho no forno, como castigo por este se interessar demasiado por companhias e
modos cristãos – no forno de fundir o vidro, supõe-se. É do conhecimento comum
que os judeus foram rendeiros e comerciantes, em virtude da proibição cristã
sobre a prática da usura, mas a verdade é que também foram ferreiros,
sapateiros e tintureiros, entre outras ocupações, ditas mecânicas – e esta
cantiga de Santa Maria sugere-nos que o ofício de mestre vidreiro também se
incluía entre os trabalhos realizados pela comunidade judaica, admitindo nesse
conjunto a dos judeus olisiponenses.