The
Outsider, adaptação de um livro recente de Stephen King, é inscrito
pela ingenuidade simultaneamente encantatória e exasperante com que,
demasiadas vezes, os autores americanos tentam enxertar as suas criações
em mitologias de origem europeia para fazê-las crescer com o viço
mítico que alimenta o reservatório folclórico do Velho Mundo; neste
caso, a criatura que perambula pelo Bible Belt, metamorfoseando-se
em diversas pessoas com quem contacta de molde a predar os fracos sob
essas identidades, é descrita como sendo o monstro que, através dos
tempos, foi arregimentando relatos e lendas sobre o Papão — ou El Cuco,
em expressão espanhola, como é tratado em The Outsider. Com efeito,
quando a personagem Holly Gibney, detective contratada para descobrir
pistas sobre este estranho caso, navega a páginas tantas num motor de
busca de Internet por entre imagens amadoras de avistamentos de El Cuco e
as pinturas negras de Goya percebe-se que existe, efectivamente, um
distanciamento enorme entre a sensibilidade americana e a europeia, pois
se para a primeira essa cena evocará um lastro mitológico longínquo e
até desconhecido, para os olhos europeus a mesma cena tem o efeito de um
duche de água fria. Quão melhor seria se os criadores de The Outsider
tivessem rebuçado o monstro sob o anonimato, numa mitologia endémica,
natural desta produção, sem necessidade de alistá-lo no bestiário.
No folclore e no hagiológio de Portugal, a Cuca ou Coca é, muitas
vezes, uma criatura saurópside — como o Dragão que é derrotado nas
festividades do feriado do Corpo de Deus, em Monção. Nos livros de O
Sítio do Pica-Pau Amarelo, o escritor brasileiro Monteiro Lobato
imaginou a sua Cuca como sendo uma jacaré bruxa, prima do Saci-Pererê.
Não obstante a sonoridade patusca, o nome precipita do étimo grego
‘kako”, que significa “mau” ou “maléfico”, e do qual se desprendeu a
acepção excrementícia de “caca” e de “cocó”. É, por conseguinte, um nome
que tem estado sempre associado ao mal, à sujidade, ao nauseabundo.
Aliás, palavras como “cisma”, “consciência” e “ciência” são todas
cognatas do étimo em latim “scire”, aparentado de “kako” e do étimo
indo-europeu “shkei”, que também significa “excremento”.
Alheias a estas ligações etimológicas, as personagens de The Outsider
caçam El Cuco numa velhíssima gruta de infame historial e conseguem
eliminá-lo com relativa facilidade, pois, para sua sorte, a criatura
encontrava-se num momento de fraca forma — embora uma coda algo
mercenária, martelada já a ficha técnica do último episódio se
desenrolava, sugira que poderá ser produzida mais uma temporada.
Não li o livro de King, mas, pelo que conheço do seu estilo, The Outsider assemelha-se mais a um híbrido eficaz das primeiras temporadas
de The X-Files (a sobriedade antártida do tom, da cinematografia e da
banda-sonora), os romances de Clive Barker (a caracterização à inglesa
da psique perturbada de personagens bizarras) e a matriz narrativa de
King (crónica dos medos contemporâneos da sociedade americana, um
ambiente cercado pela cultura popular e os ‘underdogs’ contra as forças
do Mal).
Na verdade, The Outsider atenua algumas das
características de King que enunciei acima, como as referências à
cultura popular da época em que a história se situa, o que favorece o
todo, tornando-o mais intemporal. No entanto, no que concerne à crónica
pesadelar da actualidade, alia-se no mesmo inimigo o medo da pedofilia e
o do roubo da identidade: à semelhança de It, também aqui a criatura
transmuta de forma e é uma predadora de crianças — porque «são mais
doces», lembrando os fãs de King que o autor tem desenvolvido a ideia de
que os seus monstros provêm, em regra, do mesmo local: um abismo
inter-dimensional, situado entre mundos, ninho de monstruosidades
malévolas, entre o demoníaco e o alienígena. É a influência de
Lovecraft, provavelmente, mas se os seus monstros espaciais se
caracterizavam pela indiferença face ao humano, os de King estão
totalmente interessados em nós. Na verdade, parecem viciados no humano.
É por esta via que eu considero que os monstros de King se comportam
como demónios medievais e os seus heróis são representantes de uma
espécie de piedade popular de pendor protestante, segundo a qual os
“escolhidos” vencerão. Muitas vezes, os heróis de King derrotam o Mal
por meios verdadeiramente perfunctórios, o que só pode justificar-se
pelo facto de que o actor vale mais que a acção; ou seja: o Mal é
derrotado, porque foi enfrentado por determinada personagem e não por
outra. No confronto entre o Bem e o Mal é importante escolher o campeão
do Bem. No fundo, a Fé vale mais que as Obras, numa lógica determinista
puramente protestante — mesmo quando o cunho determinista é atenuado, a
tónica assinala-se pela fé nas Escrituras e não na conduta. Assim, os
heróis de King (e não só) acabam por ser os indivíduos mais
imprevisíveis, os anti-sociais, os marginais, os imperfeitos. Uma lógica
que, com efeito, já vinha anunciada na primeira epístola de Paulo aos
Coríntios: «Deus escolheu propositadamente as coisas que o mundo
considera loucas para envergonhar aqueles que pensam ser sábios e
escolheu as pessoas fracas para envergonhar as que têm poder» (Coríntios, 1, 27).