Ao mesmo ritmo que a Vida é, até prova contrária, endémica deste 
planeta, ela consiste num fenómeno incidental, contingente de 
arbitrariedades e coincidências, de infinitesimais ajustes de condições.
 O mais natural seria que, à semelhança do remanescente cosmos, ela não 
existisse. 
 Surpreende esta conclusão tão óbvia e tão oclusa, a 
de que a vida é árdua para todas as espécies, em parte porque todas são 
clandestinas neste mundo que, provavelmente,  nunca esperou albergá-las.
 Na maior parte das vezes, a vida das espécies faz-se contra o próprio 
mundo: o sucesso delas é a derrota deste.
 Quando era criança, vi 
um documentário sobre a vida selvagem que me chocou e cuja recordação, 
hoje, ainda me perturba: em África, um punhado de marabus repastava-se 
em tragar de dentro de dezenas de ninhos feitos nos ramos de uma árvore 
as crias há pouco tempo saídas dos ovos de um bando de pássaros que, 
impotentes, prostestavam com ruidoso alarme - num plano filmado em 
frente ao Sol, via-se distintamente os pássaros bebés a rolarem numa 
grotesca cambalhota pela goela semi-translúcida dos marabus. Seres com 
poucos dias ou até horas de existência terminavam a sua efemeridade 
dissolvidos em bolsas de ácido gástrico, baldando as esperanças dos 
progenitores que tanto trabalho e desvelo tiveram na edificação dos 
ninhos. De quem seria a culpa desta circunstância violenta? Dos pássaros
 que escolheram um mau local para fazerem os ninhos? Dos insensíveis 
marabus de apetite voraz? Deste mundo padrasto que é perverso e cruel 
para todos? 
 Sem dúvida que a observação deste tipo de 
ocorrências terá fortalecido a noção de que a vida no mundo é falsa, 
perversa e injusta. Mais do isso: a ideia de que aquilo que se vive aqui
 no plano terreno nem vida será, sequer, mas uma paródia marionetada por
 uma mente doente da qual somente a morte nos libertará. Essa noção 
platónico-gnóstica encerra a verdade profunda de que a Vida é, de facto,
 incidental. Este planeta não precisava de ter vida nenhuma. E, como 
tal, como ainda ninguém lhe disse que ela existia, continua a agir no 
seu ritmo orocronolento, tão rude e brutal como nos tempos em que lava 
fundente fluia nas fístulas da Terra. Bactérias, plantas e animais, 
todos aparentados verticalmente uns com os outros desde que ácidos 
nucleicos assentaram como escuma na cútis morna do abiogenésico caldo 
primordial, são superfluidades na arquitectura do planeta, à laia de 
disformes gongronas nos gerônticos troncos das árvores. 
 Radica 
neste sentimento de revolta o mitema de que a vida verdadeira não é para
 ser vivida aqui, mas em outro plano não-rebatível com este e somente 
acessível pela morte do disfarce terreno, como Séneca disse a Lucílio 
empregando a metáfora de que o corpo era a casca de um novo organismo 
que nascia com a morte e que se deixava para trás. 
 Eu não sei se
 Séneca estava certo. Sei que, de facto, a ideia de uma vida 
extra-terrena também teve a sua própria evolução, com recuos, avanços e 
consolidações. Civilizações existiram que não tinham como horizonte a 
crença numa vida pós-morte. Com efeito, a percepção de que a Vida é um 
acidente, e que o Sol não deixaria de brilhar se ela não existisse, 
parece ter criado dois tipos diferentes de atitudes, cada qual com as 
suas inflexões contemporâneas: 1) a da cândida aceitação de que esse é o
 estado das coisas; e 2) a busca da transcendência.
 Quando me 
ponho a reflectir sobre estas matérias muita informação me passa, em 
rede — no sentido da conexão, mas também no da rede de pesca, com tantos
 dados ensarilhados uns nos outros — pela cabeça; no entanto, a 
perturbante imagem dos marabus a devorar pintainhos inteiros pontifica 
num local elevado da minha catedral de cepticismo. Ao mesmo tempo é 
também por essa via que compreendo a necessidade do sentimento 
religioso. Cada criatura, autotrófica ou não, tem de criar para si — não
 a realidade — um sentido para a realidade, um laço de luz entre o 
barbarismo das trevas mais interiores e o empíreo salvífico que nos 
remirá de uma condição incerta, dolorida, por vezes miserável. O Homem é
 o fruto da verticalidade do barro — como é que se pode desinventar essa
 roda? O espaço vertical é a coordenada de astros e deuses, de dias e 
noites, de nuvens e estrelas.
 Histórias, mitos, teorias e 
ideologias, versos, leis e pregões. Onde estão os fósseis das histórias?
 Onde, entre artropódicas impressões de trilobitas e veneráveis pegadas 
de dinossauros, se encontra registada a calandragem das ideias? A ficção
 — a virtualidade — é o elemento natural do ser humano: é tão espantoso 
assim o sucesso das tecnologias virtuais? Desde que começámos a riscar 
com cores nas paredes das paleolíticas igrejas que são as grutas que 
vivemos em completa e total virtualidade.